sábado, 28 de setembro de 2024

Dia dos Amantes

 

         Outrora eram somente os santos e as figuras históricas. Hoje praticamente todo profissional tem o seu dia. Mesmo fora das profissões, basta alguém pertencer a uma categoria para ter a sua data especial, tornando-se alvo de homenagens cujo objetivo não é outro senão incrementar o comércio. Há um dia para tudo e para todos, do faxineiro ao vendedor de picolé – o que, quanto a este, é muito justo. Num país quente como o nosso, o picolezeiro tem a nobre função de refrigerar os corpos e desentorpecer as almas, deixando-nos mais dispostos para enfrentar estações como o verão.

         A prova de que o hábito se disseminou é que no dia 22 de Setembro comemorou-se o Dia dos Amantes. Catei nos jornais alguma referência mais extensa a tão curiosa efeméride, e nada encontrei; mas os amantes bem que mereciam uma crônica. Vejam que a data não se refere aos amados, ou às amadas, que são entidades nobres e gozam do prestígio da sociedade.  Refere-se aos que amam com ímpeto transgressivo, o mais das vezes burlando normas e atropelando os papéis sociais. Os amantes são “os outros”, que por razões óbvias não podem se declarar. Daí a curiosidade que um dia dedicado a eles provoca.

         Machado não os tinha em alta conta – certamente pelo bom casamento que fizera com D. Carolina.  Vejam o que ele diz no breve Capítulo XXXVIII de “Quincas Borba”, capítulo esse que antecede o da confissão amorosa do ingênuo Rubião à sagaz e interesseira Sofia: “Rubião estava resoluto. Nunca a alma de Sofia pareceu convidar a dele, com tamanha instância, a voarem juntas até às terras clandestinas, donde elas tornam, em geral, velhas e cansadas. Algumas não tornam. Outras param a meio caminho. Grande número não passa da beira dos telhados...”. Se os envolvidos retornam com as almas velhas e cansadas das “terras clandestinas”, melhor seria que por elas não se aventurassem... Mas não vai ser esse reparo, típico do Bruxo quanto a essa e outras falhas humanas, que vai enfraquecer o nosso registro.  

            Fala-se que amantes são todos os que amam com paixão, sejam eles namorados ou esposos. Haverá nesse argumento um eufemismo interesseiro, cujo objetivo seria descaracterizar os homenageados a fim de incluí-los mais amplamente, e sem remorso, entre os que merecem os mimos adequados à ocasião. Tudo para vender mais. Os amantes habitam mesmo o “outro lado”, não são os parceiros institucionalizados do amor. São antes cúmplices, por isso não deixa de ser curioso escolher para eles um dia, à semelhança do que se faz com os santos, os avós, os pais e as mães.

         Notei que pouco se falou na data, mas certamente ela foi comemorada. Por meio não de cartões ou telegramas explícitos, mas de e-mails cifrados que atravessaram a Internet levando o apelo ansioso e triste de dois corpos solitários. Talvez em encontros furtivos num desses motéis promocionais, que além do preço módico prometem sigilo absoluto. Pois esse é o tipo do dia para se comemorar na surdina, à meia-luz, por debaixo do pano.  

         Enfim, leitor, sem hipocrisia nem cinismo enalteçamos os amantes no seu dia. Deles é a glória da indústria de perfumes e lingeries. Sem falar de quanto faturam os sex shops numa ocasião como essa. Se hoje as datas valem sobretudo pelo que vendem, e os amantes têm lá a sua fatia de mercado, comemoremos sem preconceito a data a eles dedicada. Sem preconceito e com a sinceridade de reconhecer: que ser humano já não se deixou tocar pelo tentador mistério das “terras clandestinas”? 

quarta-feira, 25 de setembro de 2024

Woody Allen, não por acaso

“Golpe de sorte em Paris” reprisa uma conhecida obsessão de Woody Allen: o papel do acaso na determinação do que nos acontece. Só que a forma como o tema é tratado não está no nível que o diretor/roteirista alcança, por exemplo, em “Match Point”, onde a  narrativa é mais densa, e os diálogos, mais inventivos.

A partir do encontro (casual) com Alain, um antigo colega de classe, Fanny inicia um caso que tende a pôr em xeque o seu casamento. Sabendo disso, o marido (Jean) trata de providenciar a morte desse amante, repetindo o que fizera para se livrar de um antigo sócio. 

O plano funciona até o momento em que a mãe de Fanny, a partir de uma conversa com amigos, começa a desconfiar do genro. Ele percebe isso e arma um plano para também eliminá-la. O fato de essa nova tentativa fracassar  (já dei spoiler o suficiente) é o meio de que Allen se serve para destacar no jogo cego do destino o componente da ironia. 

É irônica a forma como, no final, o assassino é “punido” — caso se possa chamar de punição um ato para o qual não há nenhum propósito consciente e deliberado. Essa questão Allen implicitamente deixa aos espectadores.

Nesse ponto “Golpe de sorte em Paris” difere de “Match Point”, em que o assassino sai incólume (a não ser pela manifestação de um discreto sentimento de culpa). Nem por isso se pode dizer que a ironia sugere algum tipo de justiça, pois o seu efeito benéfico deriva de uma ocorrência casual. 

Enfim, segundo a visão de mundo do autor, estamos na dependência da sorte. O que nos acontece é gratuito, não obedece a um desígnio superior. O que podemos fazer é instaurar dentro dos nossos limites uma causalidade humana orientada por ideais de justiça e igualdade.

          O filme, claro, não contempla objetivamente essa ressalva. Seu propósito, coerente com o inesperado desfecho, é deixar em aberto a questão e nos fazer pensar. Ou filosoficamente sorrir, pois há em toda ironia uma nota de humor.

terça-feira, 17 de setembro de 2024

O real motivo

          A função da publicidade não é apenas vender. É despertar em nós recônditos impulsos, criando necessidades até então inexistentes ou, pelo menos, ignoradas. O comercial age um pouco como a droga, que o indivíduo propenso ao vício despreza enquanto não conhece. Depois de tê-la experimentado, não consegue mais viver sem ela.

    A publicidade também faz registros curiosos e sintomáticos da vida moderna, funcionando como documento antropológico ou retrato psicológico da sociedade atual.  Nesses casos, tem muito pouco de invenção. Em vez de se antecipar à realidade, como obra de ficção que é, capta o que está nela disperso.

Me lembro, a propósito, de um comercial sobre uma marca de carro exibido há algum tempo na TV. Um pai, depois outro e mais outro levam seus filhos ao colégio. Os meninos vão ansiosos, preocupados. Pedem aos velhos que não parem o automóvel na entrada da escola, onde como é natural se agrupa muita gente. Os pais não entendem, desconfiam de que alguma coisa está errada. Supõem então que os filhos temem o julgamento dos colegas por estarem naqueles carros feios, ultrapassados.  

Não havia nessa mensagem publicitária nada de novo. O comportamento dos garotos ainda é muito comum nos dias que correm. E não quanto ao carro. ouvi de alguns pais que seus filhos se envergonham da casa, da roupa, do computador superado que têm em casa.

O problema é que, ao documentar esse tipo de reação, o comercial praticamente o endossava. Apresentava como legítimo o ressentimento dos meninos. Mas quem era o verdadeiro culpado por tal ressentimento?     

         Subliminarmente, a peça publicitária dava a entender que o motivo da vergonha dos filhos não eram os automóveis. O motivo eram os pais, que não tinham dinheiro ou discernimento para comprar coisa melhor. Os pais é que os garotos, encolhidos naquelas “carroças” fora de moda, gostariam de esconder dos colegas. 

quinta-feira, 12 de setembro de 2024

A recusa a envelhecer

Tem crescido o número de pessoas que se submetem a procedimentos estéticos. Segundo li em matéria divulgada pela Internet, “no Brasil houve um aumento de 390% na procura por esses procedimentos no primeiro trimestre de 2022, em comparação com o mesmo período do ano anterior.” Retirada de gordura, preenchimento facial ou mesmo a tradicional plástica são comuns nos que querem melhorar o seu aspecto físico.   

Muitos desses procedimentos não são seguros, e a gente se pergunta o que leva as pessoas a correrem esse tipo de risco. A resposta parece óbvia: a recusa em aceitar a deterioração que a velhice traz. Se beleza é juventude, como se costuma dizer, envelhecer é ficar feio e ir de encontro às determinações de uma sociedade que exalta a aparência e pouco liga para o que há dentro de cada um.   

          Recentemente morreu Alain Delon, um dos ícones modernos da beleza masculina. A mídia fez questão de confrontar sua imagem de hoje com a do jovem que há algumas décadas fazia as garotas suspirarem. Desse confronto emergia a dura percepção do que o tempo faz ao corpo, roubando-lhe o prumo, o viço, a esbeltez que ele ostenta nas primeiras décadas de vida.

Bilac escreveu que a velhice é coisa vil – lembra Rubem Braga em uma de suas crônicas. “Vil” quer dizer “desprezível”, um adjetivo forte e talvez injusto, mas que muitos usam sem hesitação nem pejo para qualificar esse delicado momento da vida.

Um paradoxo curioso é que antigamente, quando a ciência cosmética dispunha de poucos recursos, havia uma maior aceitação da chamada senectude (expressão ante a qual muitos se arrepiam, temerosos das macacoas comuns a esse estágio da vida). Envelhecia-se mais cedo, é verdade, mas havia uma maior tendência a aceitar o duro veredicto do tempo. Parecia não haver mesmo outro jeito.

Hoje o comum é se insurgir contra as transformações determinadas pela velhice. Se existem alternativas, por que aceitar as rugas, estrias e outras marcas que ela traz?  Não é melhor submeter o corpo aos reparos que, com o dispêndio de uma boa grana, podem lhe dar um aspecto de novo juvenil?

Tudo seria simples e gratificante se a Natureza propiciasse esse tipo de reversão. Apesar de filosoficamente se falar em “eterno retorno”, a verdade é que o tempo não nos permite retroceder. No mais das vezes, os estratagemas com que procuramos nos furtar ao seu fluxo terminam por se voltar contra nós. Piorando, por exemplo, o aspecto que se queria esconder. Ou ironicamente antecipando o fim, como ocorre nos acidentes letais que vemos hoje em mesas e leitos de cirurgias estéticas.

Um nome de mulher