Outrora eram somente os santos e as figuras históricas. Hoje praticamente todo profissional tem o seu dia. Mesmo fora das profissões, basta alguém pertencer a uma categoria para ter a sua data especial, tornando-se alvo de homenagens cujo objetivo não é outro senão incrementar o comércio. Há um dia para tudo e para todos, do faxineiro ao vendedor de picolé – o que, quanto a este, é muito justo. Num país quente como o nosso, o picolezeiro tem a nobre função de refrigerar os corpos e desentorpecer as almas, deixando-nos mais dispostos para enfrentar estações como o verão.
A prova de que o hábito se disseminou é
que no dia 22 de Setembro comemorou-se o Dia dos Amantes. Catei nos jornais
alguma referência mais extensa a tão curiosa efeméride, e nada encontrei; mas os
amantes bem que mereciam uma crônica. Vejam que a data não se refere aos
amados, ou às amadas, que são entidades nobres e gozam do prestígio da
sociedade. Refere-se aos que amam com
ímpeto transgressivo, o mais das vezes burlando normas e atropelando os papéis
sociais. Os amantes são “os outros”, que por razões óbvias não podem se
declarar. Daí a curiosidade que um dia dedicado a eles provoca.
Machado não os tinha em alta conta –
certamente pelo bom casamento que fizera com D. Carolina. Vejam o que ele diz no breve Capítulo XXXVIII
de “Quincas Borba”, capítulo esse que antecede o da confissão amorosa do
ingênuo Rubião à sagaz e interesseira Sofia: “Rubião estava
Fala-se que amantes são todos os
que amam com paixão, sejam eles namorados ou esposos. Haverá nesse argumento um
eufemismo interesseiro, cujo objetivo seria descaracterizar os homenageados a
fim de incluí-los mais amplamente, e sem remorso, entre os que merecem os mimos
adequados à ocasião. Tudo para vender mais. Os amantes habitam mesmo o “outro
lado”, não são os parceiros institucionalizados do amor. São antes cúmplices,
por isso não deixa de ser curioso escolher para eles um dia, à semelhança do
que se faz com os santos, os avós, os pais e as mães.
Notei que pouco se falou na data, mas
certamente ela foi comemorada. Por meio não de cartões ou telegramas
explícitos, mas de e-mails cifrados que atravessaram a Internet levando o apelo
ansioso e triste de dois corpos solitários. Talvez em encontros furtivos num
desses motéis promocionais, que além do preço módico prometem sigilo absoluto.
Pois esse é o tipo do dia para se comemorar na surdina, à meia-luz, por debaixo
do pano.