domingo, 30 de março de 2025

Um nome de mulher

Recebi com tristeza a notícia da morte de Heloísa Teixeira, que tive como professora quando fiz o Mestrado na UFRJ. As aulas ocorriam na Faculdade de Comunicação, na Praia Vermelha, e eram marcadas pela informalidade e o bom humor. 

O clima era bem mais ameno do que o que imperava no prédio da Av. Chile, onde então funcionava a Faculdade de Letras e pontificavam figurões como Afrânio Coutinho, Eduardo Portela e outros.

Nos cursos de Heloísa tomei contato com a poesia da chamada Geração Mimeógrafo, que surgiu durante a década de 1970 como uma forma de resistência ao regime militar e produzia uma arte dita marginal. 

Dessa geração faziam parte, e foram por nós estudados, poetas como Cacaso e Ana Cristina César, que editavam seus textos em mimeógrafos e procediam a variados experimentos linguísticos; era comum associarem o erudito ao popular. À expressão dos dramas pessoais, aliavam a preocupação com o momento que o País atravessava.

Heloísa foi uma defensora do movimento feminista. Via nele um meio de afirmação das mulheres no plano da sexualidade e da atuação político-social. À mulher cabiam outros papéis além dos de mãe e dona de casa, os quais lhe foram atribuídos pelo machismo hegemônico. 

O contato com poetas ainda não incluídos no cânone acadêmico ampliou-me o conhecimento da nossa literatura. Foi enriquecedor perceber que, a par de Machado de Assis, Guimarães Rosa, Clarice Lispector e outros frequentemente trabalhados na academia, havia quem procurava inovar com precários recursos editoriais e uma radical entrega de si mesmo sem a presunção de sucesso ou glória. 

Devo à mestra que acaba de nos deixar a percepção disso. 

Quando fui seu aluno, ela tinha o sobrenome de Chico e do seu pai, Sérgio. Embora tivesse se separado, não retirara o “Buarque de Holanda”  que adquiriu do ex-marido. Isso me despertava a curiosidade; sem conhecer direito a história,  eu imaginava o seu parentesco com o autor de “A banda” (um ingênuo delírio de fã, como veem…).

Só muito depois ela decidiu mudar o sobrenome para “Teixeira” — segundo li, “como uma forma de resgatar sua identidade materna e homenagear sua mãe”. 

Em entrevistas, relatou que “a decisão foi tomada após anos de reflexão sobre o papel da mulher na sociedade e a importância de valorizar a ancestralidade feminina”. A mudança teve, então, um valor simbólico. Refletia a coerência com os princípios identitários que pregava e se constituía em mais um elemento de afirmação pessoal.





quinta-feira, 27 de março de 2025

Algoz e vítima

O bullying sempre existiu no ambiente escolar. É uma prática que reflete a natural tendência do ser humano a julgar, ou mesmo rejeitar, os que lhe parecem inferiores do ponto de vista físico ou intelectual. Entre os adolescentes, que passam por transformações que lhes fragilizam a personalidade, o bullying pode ter efeitos desastrosos. Um desses efeitos – o assassínio de uma garota por um colega de classe – é o tema da série “Adolescência”, que atualmente lidera a audiência na Netflix. 

Muito já se escreveu a seu respeito, de modo que fica difícil dizer algo novo. Falou-se, por exemplo, sobre a filmagem de cada episódio num único plano-sequência, o que concorre para fazer o espectador “participar” da história. Ou sobre o sensível trabalho dos atores, exigidos ao máximo devido à maneira como a série é filmada.

O que mais me chamou a atenção foi a forma como os roteiristas expressam as razões pelas quais o garoto Jamie comete o crime. Sabe-se que elas dizem respeito tanto ao ambiente escolar quanto à negligência da família – mas isso só fica bem claro no fim. 

O roteiro não enfatiza ao longo da trama nenhuma das duas. Dá indicações, mostrando por exemplo a indisciplina de determinados alunos em classe diante de professores que não são levados a sério, ou o temperamento violento do pai do menino. Cabe ao espectador ir colhendo as evidências para atribuir o devido peso a cada um desses motivos. 

A série é dolorosa, mesmo cruel, por mostrar que o ato de tirar a vida da garota foi a resposta a um profundo sofrimento interior. Jamie investiu contra alguém que lhe ressaltara a condição de “incel” (involuntariamente celibatário), confinando-o a uma desesperadora solidão. Isso obviamente não justifica o crime, mas dificulta a atribuição de responsabilidade e concorre para que se veja o menino como algoz e também vítima.

O reconhecimento dessa dualidade se espelha nos olhos horrorizados da psicóloga que o interroga no lancinante terceiro capítulo – o melhor da série. Ela convive com o garoto durante quatro sessões marcadas por alternâncias de humor e uma violência ora contida, ora expressa por acusações de ambas as partes. Sua impotência para fazer um julgamento adequado, mesmo percebendo-lhe a culpa, acaba desmoronando-a emocionalmente.            


sexta-feira, 21 de março de 2025

Para melhor conhecer a nossa língua

 

“Em bom português…”, coletânea da qual participo, é um conjunto de reflexões sobre a nossa língua organizado pelo professor e gramático Fernando Pestana. 

Publicada pela Kírion, a obra inclui artigos e crônicas selecionados do blog “Língua e Tradição” ao longo dos últimos quatro anos. Dela participa um grupo de estudiosos que refletem sobre questões que se põem a quem ensina ou simplesmente usa o português — entre elas, o papel da norma culta e a possibilidade da sua flexibilização nos registros informais;  o peso da tradição nas escolhas linguísticas da modernidade; o efeito da educação na formação dos usuários; entre muitas outras.

A par desse lado mais sisudo, há textos que “brincam” com as palavras mediante jogos fônicos e semânticos reveladores do potencial lúdico da linguagem. São uma forma atraente de abordar fenômenos como a polissemia, homofonia e a paródia, que procedem à desautomatização dos sentidos e por vezes têm efeito de humor.

O rigor na seleção dos textos, a amplitude dos temas  e o tratamento objetivo que a eles é dado são a garantia de uma leitura enriquecedora e prazerosa. Indico vivamente a obra.

sexta-feira, 14 de março de 2025

Adeus a Affonso

 


Affonso Romano de Sant’Anna aliava o conhecimento da literatura ao talento para a criação literária (foi ensaísta, cronista, poeta).

Como estudioso, pesquisou as matrizes de dois procedimentos que se refletiram em muito da nossa produção – a paráfrase e a paródia. Esta última categoria, trabalhada em alguns dos seus textos e brilhantemente explorada nas aulas, levou-nos a compreender melhor a obra de um Oswald de Andrade, um Drummond ou um Mário Quintana (para citar alguns exemplos).

Politicamente, preferia questionar “que país este” a propor estratégias de engajamento social, fazendo desse questionamento um estímulo para que se pensasse além do simplismo das ideologias. 

Os cursos que fiz com ele na Pós-Graduação da UFRJ ajudaram-me a entender a literatura como um continuum no qual as rupturas são muitas vezes retomadas de procedimentos anteriores. Num deles, sobre literatura e carnavalização, escolhi apresentar na avaliação final monografia sobre o romance “A verdadeira estória de Jesus”, de Waldemar Solha, inserido no corpus a ser analisado.

Não deixa de ser curioso que ele tenha morrido durante o Carnaval, tema que abordava em suas aulas sobre a “sátira menipeia” – protótipo da “inversão” presente nos festejos dessa festa pagã e profana que realça a feição contraditória do nosso espírito. 

Evoé, Affonso, misto de gentleman e disfarçado folião! Se outro mundo existe, foste recebido não por um coro angelical, mas por uma trupe de mascarados que escondem sob o disfarce o que há de intensamente humano em nós. 

Um nome de mulher