sexta-feira, 5 de dezembro de 2025

Para além do clichê



             Muito já foi dito sobre a atitude de Gerson de Melo Machado, morto recentemente por uma leoa na capital paraibana. O inusitado do seu gesto, no entanto, faz com que sempre haja algo mais a dizer. Gerson comentava com uma conselheira tutelar que queria ser um domador de feras. Disse-lhe que “ia pegar um avião pra ir pra um safári na África para cuidar dos leões...”. No afã de realizar esse intento, chegou a cortar uma cerca e entrar no trem de pouso de um avião da Gol; as câmeras do aeroporto impediram que o pior acontecesse.  

Filho de mãe esquizofrênica e neto de uma avó com problemas mentais, ele tinha na genética um inimigo. Presa de mais um delírio, encenou o último ato do seu drama (ou tragédia) aqui em João Pessoa. Imaginou que a Bica fosse um circo e se propôs a domar um dos felinos lá existentes. Queria pôr em prática o que durante anos acalentou como um desejo infantil. Numa espécie de transposição entre fantasia e realidade, o domínio sobre os animais seria uma metáfora para a vitória sobre as “feras” que interiormente o consumiam. 

Acabou, sem querer, transformando o Parque Arruda Câmara em local de um espetáculo tenebroso. Os turistas e demais visitantes depararam-se com o que não imaginavam encontrar num lugar dedicado à recreação e à momentânea fuga ao estresse da cidade (mais de uma vez levei lá meus netos, que se encantavam com a fauna e a flora diversificadas). 

Há algum tempo um leão circense arrastou uma criança que se aproximara da jaula e a matou.  Falou-se então em negligência dos responsáveis pelo circo, também dos pais, e houve até processo. O dono do empreendimento chegou a sofrer um ataque cardíaco. Agora a situação é outra, pois a vítima se ofereceu à sanha do felino. Leona, como toda fêmea, era ciosa do espaço que lhe cabia guardar – e mal esperou que o invasor tocasse o solo. 











Sabe-se que Gerson adoeceu devido a genética e desamparo. Destituído do poder familiar da mãe, fora impedido de ser adotado – diferentemente do que ocorreu com os quatro irmãos. Passou diante disso a ter um comportamento erradio e marginal, o que mais ainda dificultava a sua adoção; família alguma queria receber alguém como ele. A sociedade não lhe deixou então saída. Seu gesto foi produto de negligência, não da administração da Bica, mas de todo um aparato social que o condenou ao abandono.

“Atirar-se na boca do leão” é uma expressão figurada com que se designa a atitude suicida de alguém. Ninguém espera que esse clichê tenha um sentido literal, mas por vezes a sociedade se encarrega de tornar realidade o que, por absurdo ou inverossimilhante, a linguagem reserva ao domínio das figuras. Isso pode ocorrer no plano do horrendo e também do sublime. Pode nos conceder enlevo ou estupor. Num e noutro caso, encoraja-nos a repensar sentimentos e valores, e nos conduz a uma mais ampla percepção de nós mesmos.

            Gerson deu consistência real a uma imagem horripilante, que nos remete à selva de onde presumivelmente evoluímos. Com essa atitude, fruto de insensibilidade e rejeição social, ele mostrou o quanto ainda há de primitivo em nós. Depois do que fez, é impossível mencionar aquele clichê linguístico sem evocar o seu tresloucado gesto.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Para além do clichê