domingo, 12 de junho de 2016

Carta a Berta (2)

Querida Berta:

Só não digo que a coisa aqui está preta para evitar interpretações racistas, mas a verdade é que se tornou muito difícil suportar o País. A crise é política, ética, econômica e também doméstica, pois de um modo ou de outro ela entra em nossa casa. O clima não está bom entre mim e Celeste, minha mulher, que cada vez faz menos jus ao nome e tem-se mostrado infernal.
Sempre tivemos posições diferentes, mas isso nunca justificou as desavenças que está havendo entre nós. Ela era PT; eu, PMDB. Ela, por causa de Lula; eu, devido a Ulisses Guimarães, que sempre me pareceu uma reserva moral. O problema é que, no Brasil, a moral tem ficado mesmo na reserva, e acabamos descobrindo que entre o PT e o PMDB não há diferença – a não ser no discurso. As práticas políticas e administrativas são as mesmas. Aceitei isso numa boa, mas Celeste não quis dar o braço a torcer (o que, aliás, é próprio dos que pensam como ela).
Desapontada com Lula (pelo qual, desconfio, teve uma paixão platônica no tempo em que ele era pobre e barbudo), Celeste resolveu vender a bicicleta que tinha comprado para imitar Dilma (deixara a academia porque, segundo ela, esse era um lugar para as dondocas da elite).
Como quase sempre ocorre entre os casais, sua raiva acabou se voltando contra o marido, ou seja, eu. Depois de uma discussão séria que tivemos, ameaçou fazer greve de sexo. Respondi-lhe que, por mim, ela podia fechar as portas. Isso acabou enfurecendo-a a ponto de ela não querer fazer mais nada em casa. Seria um boicote de cama, mesa e banho.
E mais: atribuiu a minha reação ao fato de ela sempre ter sido “do lar”. De agora em diante seria diferente; eu é que lavaria a louça, passaria o pano na casa, passearia com o cachorro e assistiria às novelas da televisão. Pedi-lhe, em nome de Lula e das antigas glórias do PT, que me poupasse pelo menos dessa última tarefa. Ela foi durona (estilo Dilma!) e manteve o castigo.
Eu teria outras coisas a lhe dizer, mas fica para outra vez. Está na hora de levar “Bolsonaro”, nosso pitbull, para fazer as necessidades. Se ele sujar a sala, nem sei o que Celeste fará comigo. 

          Do seu mui aflito 
          Nicanor.

domingo, 5 de junho de 2016

Carta a Berta

Querida Berta:

Estou pensando seriamente em deixar o País. Qualquer alternativa (com exceção da Venezuela, claro) é melhor do que isto aqui. As coisas andam muito confusas. Só para lhe dar uma ideia: o presidente em exercício (a gente fala assim, embora não saiba que atividade física ele pratica) não consegue “fechar” o novo ministério porque, entre os indicados, um ou outro tem problemas com a Justiça. Ou ele não sabe quem está escolhendo, ou lhe faltam mesmo opções.
         Dizem que acertou na equipe econômica e está errando no resto. Inclusive no português, pois precisa se tornar simpático ao povo mas abusa das mesóclises. Ele parece não saber que o povo rejeita esse tipo de construção (assim como não gosta do “cujo”). A mesóclise, além do mais, é de péssimo augúrio; faz lembrar “o homem da vassoura”, aquele que renunciou devido a forças ocultas, lembra?
Se continuar errando, o presidente (em exercício, ufa!) não vai emplacar. Com isso, terá que devolver o cargo à... presidenta (não sei se é pior pronunciar essa palavra ou ouvir um “sê-lo-á”). Para alguns, isso seria um contragolpe, mas o Brasil é assim mesmo; golpeia hoje e sofre o revide amanhã.
         Você é que é feliz morando aí. Não tem que acompanhar as idas e vindas do novo governo e o temor dos políticos, que estão em polvorosa por causa da Operação Lava-Jato. A maioria deles já não dorme ou, se dorme, acorda sobressaltada com medo das delações (cada vez mais frequentes) e do juiz Sérgio Moro (que, ainda por cima, só se veste de preto). Muitos não sabem se no dia seguinte estarão num carro oficial, rumo ao trabalho, ou num avião com destino a Curitiba.
          Vou ficando por aqui, pois preciso ir para a cama antes da próxima edição do jornal. Se tiver que acompanhar mais uma daquelas transcrições de fitas gravadas, certamente vou me irritar e perder o sono. Não pelo que elas revelam, mas pelas surradas justificativas dos acusados.
       Escreva. Levando em conta o que acontece neste país, qualquer notícia que você mande servir-me-á (meu Deus, estou me contaminando!) de refrigério e deleite.

       Abraço do seu
       Nicanor.

domingo, 29 de maio de 2016

Aforismos brasileiros (2) - Paulo Mendes Campos

 “Os melhores e mais fundos milagres acontecem devagar, muito devagar.”


Esse aforismo aparece numa crônica em que o autor explica a uma adolescente passagens de “Alice no país das maravilhas”. A garota, que acabara de completar 15 anos, está na idade de acreditar que certas coisas acontecem por uma espécie de mágica. O autor a desilude ao mesmo tempo que a instrui (e qual o saber que não leva a uma perda da ilusão?). Geralmente se associam os milagres a ocorrências súbitas e excepcionais, que subvertem a ordem da natureza. A menina aprende que os milagres existem, sim, mas não ocorrem como se pensa. Resultam de um lento trabalho da vontade e da obstinação. Não são o domínio do extraordinário, do inesperado, mas do que pode acontecer ao homem desde que o animem a ação, a paciência e a esperança.

domingo, 22 de maio de 2016

Aforismos brasileiros (1) - Nelson Rodrigues



                            Só o inimigo não trai nunca.” 

Uma variante desse aforismo poderia ser: o ódio é mais fiel do que o amor. Com ele Nelson exercita uma de suas marcas, que é o gosto pelo paradoxo, e ao mesmo tempo revela um profundo conhecimento sobre os homens. Um conhecimento cheio de ceticismo e desencanto. O inimigo não “trai”, mantém-se firme em seu malquerer. Já o amigo é incerto; a amizade, mais do que o seu oposto, sofre os efeitos da inconstância humana. A ausência de traição não significa, é claro, que o indivíduo deva cultivar inimigos. Pelo contrário, nos previne de que eles são perigosos. Entretanto a persistência com que praticam o seu rancor obriga-nos a vigiar o nosso comportamento. Ao contrário dos amigos, eles nunca perdoam. 

domingo, 15 de maio de 2016

Sem rota



A vida é uma viagem
que se faz sem fazer.
Não há lugar de onde se parta
nem aonde se chegue.
É tudo aqui e nunca.

Os que pensam viajar 
não saem de onde estão,
e nesse permanecer
é que eles vão.   

Os que não querem partir  
também assim viajam,
pois, saia-se ou não,
sempre se está a caminho.

De onde, não se sabe,   
já que não há roteiro.   
E a morte colhe, indiferente,  
quem imagina conhecê-lo.

domingo, 1 de maio de 2016

Dominical

Uns estão na igreja,
outros no bar
(duas formas de preencher o vazio).
Depois será o duro despertar
para mais uma semana
de gestos profanos e frios.

(Da série "Meus pecados poéticos") 


quinta-feira, 21 de abril de 2016

A "coisinha"

Quando os negócios vão bem; quando tivemos um dia até satisfatório de trabalho; quando nos preparamos para dormir confiantes no dever cumprido; enfim, quando tudo parece nos predispor à felicidade – eis que aparece uma “coisinha”. Ela vem sob a forma de um receio, uma leve preocupação, uma lembrança incômoda que envolve nossa relação com os outros.  
Comumente a “coisinha” nada tem de objetivo; está em nós, que aparentemente a cultivamos por um impulso masoquista. Ela nasce do excesso de escrúpulo, da ânsia de perfeição, do temor de magoar os outros. Quando esses sentimentos se exacerbam, interferem em nossas relações e limitam nossa vida social. É preciso cuidado, nesses momentos, para não sucumbir ao desejo de ficar sozinho e aumentar ainda mais o muro que nos afasta dos outros. Ele pode, com o tempo, se tornar intransponível.
São várias as estratégias para se livrar da “coisinha”. Uns rezam, outros tomam sua dose de uísque (ou de cachaça). Há quem leia os filósofos ou mesmo livros de autoajuda. Quem tem dinheiro viaja, se possível para bem longe, como se a distância o livrasse da sensação incômoda – mas ela já se insinua, na noite anterior à partida, sob a forma do medo de avião. Ou de ser assaltado no país estrangeiro. São inúteis os artifícios para escapar da “coisinha”. Sem ela não há existência, o que nos leva a uma conclusão pouco confortadora: só mortos escapamos do seu inevitável aguilhão.
O maior risco que podemos correr é transformar a “coisinha” numa... “coisona”. Superdimensioná-la, fazê-la maior do que é. Tem gente especialista nisso. São os queixosos, que por impaciência ou neurastenia veem em tudo a iminência de uma desgraça. Interpretam as “coisinhas” que os perturbam como agentes de um destino cruel, que se volta especificamente contra eles para infernizar-lhes a vida. Acham-se os infelizes e não têm sequer a humildade de olhar em torno para ver quantos, neste mundo confuso e desigual, sofrem mais do que eles.
Como a “coisinha” é inevitável, não há existe alternativa senão aceitá-la. É sinal de sabedoria transformá-la no próprio tempero da felicidade. Um tempero amargo, sem dúvida, mas que podemos aprender a degustar. Com treino, chegaremos ao ponto de achar esquisitos os instantes (tão breves!) em que ela não se encontra. A felicidade sem a “coisinha” pareceria estranha e se confundiria com o tédio, ou o vazio, que também nos perturbam. Quando tudo está bom demais, receamos que alguma coisa grave nos aconteça; esse receio é produzido pela falta da “coisinha”, que nos sintoniza com  o ritmo instável do universo.
Paremos, portanto, de reclamar. Se algo pode ser perfeito, é o nada, pois nele não estamos nem nós nem o mundo. Como só o nada é perfeito, aceitemos as imperfeições da vida com a sua série de “coisinhas”. São elas, mais do que o utópico anseio de felicidade, que nos dão a sensação de existir.




A voz do destino