sexta-feira, 23 de abril de 2010

Teia de equívocos

Dizem que no início dos tempos não havia distância entre as palavras e as coisas. Cada objeto ou ser eram o que significavam e, reciprocamente, significavam o que eram. A palavra “fogo” queimava, a palavra “medo” tremia, e um vocábulo como “dor” parecia gemer.
Falar disso é entrar no reino da animização, mas não podemos fugir da metáfora quando nos referimos às origens do homem e da linguagem. A própria ideia de que palavra e coisa se identificavam é uma interpretação mítica.
Quem éramos antes de começarmos a falar? A Bíblia remonta o início de tudo à palavra: “No princípio era o Verbo”. Para as Escrituras, antes da palavra não havia o homem. A linguagem é que nos engendrou. Lacan repetiria isso séculos depois ao afirmar que o homem não fala porque é; é porque fala.
Especulações metafísicas à parte, sabemos hoje que é próprio das palavras representar o que não são. O pai da linguística moderna, Ferdinand de Saussure, descreve essa característica como arbitrariedade do signo. Os signos são arbitrários porque não existe relação necessária entre eles e os objetos ou seres que designam.
O que nos faz chamar bola de “bola”? O artefato esférico de couro com que jogamos uma boa pelada bem podia se chamar “linguiça”. E diríamos com a maior naturalidade: “chute a linguiça”, “rebata a linguiça”, “encaixe a linguiça”.
Se o sentido das palavras é convencional, não existe uma essência da linguagem. Toda semântica, ou seja, toda relação entre significante e significado envolve uma mentira, um jogo em que a verdade se dissimula pela própria insuficiência do signo.
Se acrescentamos a isso a natural má-fé do ser humano, que é um mestre na arte de disfarçar seus desejos e intenções, compreendemos o quanto estamos longe de nos entendermos. A comunicação entre os homens é uma teia de equívocos, em que cada um imagina dizer o que os outros supõem estar ouvindo.

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