Quando desembarcamos em Paris, ventava e chovia fino (manda a verdade dizer que foi em Orly, que fica a 30 quilômetros da Cidade-Luz; mas a frase não teria o mesmo efeito). Era um contraponto ao clima de Granada, onde no verão faz um calor de derreter pedreiras. Desci as escadas do avião com uma bolsa embaixo do braço e outra sobre a cabeça para me proteger dos pingos. Sem segurar o corrimão, por pouco não tropeço e me esborracho na pista -- uma forma nada gloriosa de beijar o solo francês. A chuva me fez pensar se minha asma voltaria ali, na pátria de Proust, o asmático mais famoso da literatura. Ah, não! Preferia reencontrar outros tempos perdidos; esse eu queria esquecer.
O leitor que acompanha estas descosidas impressões estranhará que eu tenha saído tão rápido de Madri (calma, ainda volto à capital espanhola). O motivo desse avanço no tempo foi o filme de Woody Allen, que vi sábado. Seu título, “Meia-noite em Paris”. O personagem principal ama andar sob a chuva na capital francesa. Como ele eu também tinha o desejo de visitar o Café de Flore, onde se reuniam os existencialistas -- mas as semelhanças entre nós param por aí. Não conversei com o pessoal da Geração Perdida nem visitei em sonho a Belle Époque. Sob a chuva fina, andamos cerca de 200 metros até o ônibus que nos levaria ao saguão do aeroporto e daí tomamos um táxi rumo ao hotel. Com a chuva o trânsito estava congestionado, mas dessa vez estimei um engarrafamento. Queria ver as ruas e decifrar os letreiros. À medida que deixávamos Orly eu esquadrinhava a paisagem em busca de um detalhe, um sinal, um traço arquitetônico qualquer que me mostrasse que eu estava em Paris. A cidade se escondia sob o cinza espesso, como certas mulheres se cobrem para melhor nos surpreender depois. No trajeto, um pequeno episódio me envaideceu: o motorista elogiou o meu francês. Agradeci (foi o primeiro “merci” entre os muitos que distribuiria), rendendo íntima homenagem aos meus velhos professores do Liceu e da Aliança Francesa.
Nosso hotel ficava na esquina das ruas Friedland e Foubourg Saint-Honoré. O motorista se confundiu e nos deixou em outro, da mesma cadeia, porém situado a uns 300 metros daquele em que devíamos ficar. Eis-me de novo carregando malas sob chuva e vento. Parecia um vaticínio, um complô meteorológico para me deixar doente. Minha mulher aconselhava, aflita: “Se agasalhe bem, se agasalhe bem!”
Uma das ruas em que ficava o hotel tinha o primeiro nome de Balzac -- “Honoré”. Haveria alguma relação? Aparentemente não, pois o da rua era um santo. Mas no dia seguinte eu ia descobrir que havia, sim. A uns dois quarteirões ficava a Praça Balzac, onde se ergue uma estátua do escritor francês. Foi diante dela que tirei a primeira foto em nossa estada parisiense. Balzac parece ter sido retirado da redação de um romance e não tem nada daquele ar solene com que os nobres geralmente posam. Dá a impressão de estar ansioso para sair dali e voltar ao livro, que precisa terminar para saldar a dívida com um de seus credores.
No hotel a recepcionista nos tratou com afetuosa atenção. Começava aí a se desmontar o mito de que os franceses são grossos e intolerantes. A moça era muito simpática e nisso não destoava da maior parte das pessoas com quem nos deparamos em lojas, restaurantes, recantos turísticos. E por falar em destruição de mitos -- também não vi ninguém, suado, carregando baguetes embaixo do braço.
Belo relato, Chico. Mas permita-me apenas um comentário. Penso que, cada vez mais raramente, nestes tempos de globalização e crise econômica, o turista será tratado com aspereza em lugares como hotéis, lojas, restaurantes, etc. Por ser consumidor e trazer lucros, é tratado cordialmente. Até os franceses hoje têm de se render ao "the customer is always right", cunhado pelo britânico Selfdridge (fundador da famosíssima e homônima loja de departamento londrina). O verdadeiro estado de espírito do povo é testado nas ruas e -principalmente, na minha opinião- no metrô, onde as massas se misturam no vai e vem subterrâneo.
ResponderExcluirApesar desta pequena discordância, em linhas gerais compartilho do pensamento. Achei-os até mais cordiais que da outra vez, dois anos atrás. Não sei se por simpatia deles ou por ter vindo de Londres, onde os habitantes são na mesma medida frios, robóticos, sisudos e calados, mas bastante polidos.
Abraço.