sexta-feira, 23 de dezembro de 2011

Solecismo amoroso

– Eu lhe gosto.
– Eu gosto de você.
– Hem?!
– Eu também gosto de você, ora.
– Está me corrigindo?
– Corrigindo como?
– Você usou o verbo diferente. Era para ter dito “Eu também lhe gosto”, ou coisa parecida. Mas me corrigiu: “Eu gosto de você”. Disse tudo certinho.
– Nem pensei nisso.
– Lhe incomoda eu falar errado? Você é capaz de amar uma mulher que não sabe português?
– Que é que isso tem a ver?
– Tudo. Eu fui sincera, disse o que naturalmente sentia. Não pensei na forma. Quem é que pensa na forma numa hora dessas? Falei que gostava de você, ou melhor, que lhe gostava. E você nem reparou no que eu disse. Reparou no meu verbo errado.
– Pelo amor de Deus, não dramatize. Eu repeti o que você tinha me dito, só que de um jeito um pouco diferente.
– Mais correto. Sem erro – como é que se diz? – de regência. Ou de concordância, sei lá.
– Regência.
– Está vendo? Me corrigiu de novo.
– Você não perguntou? Respondi à sua pergunta. Sei que é de regência por acaso. Foi uma das poucas coisas que aprendi no colégio. Tinha regência em Português e em História. Em Português a regência era do verbo e de certos nomes, em Historia era de Feijó. Você não lembra? Diogo Feijó.
– Pare, por favor. Você parece que não percebe a gravidade do que aconteceu. A partir de hoje, a partir desta conversa, alguma coisa se partiu entre nós. Definitivamente. Perdi a espontaneidade, jamais serei a mesma. Vou ter que vigiar minhas palavras, senão elas não chegam até você.
– Fale como achar melhor, ora. O importante é o que se diz, e não...
– Mentira... E ainda por cima mentiroso! Como pude gostar de alguém que está mais interessado na qualidade do meu português do que na sinceridade do meu afeto? Pra você não importa o que eu sinto, e sim a forma como devo expressar minhas emoções.
– Você está exagerando, está sendo ridícula.
– Ridícula? Ah! Primeiro ignorante, agora ridícula. O que mais? Posso ser tudo isso, mas não sou insensível. E sabe de uma coisa? Nosso namoro não daria mesmo certo.
– Mas íamos tão bem...
– Até você me corrigir em hora tão imprópria. Que marido você ia dar! Agora corrige minha linguagem, depois certamente vai querer interferir nas minhas roupas, nos meus hábitos, nos meus amigos. O casamento com você seria uma eterna sabatina, um interminável exame de seleção. Eu ia ter que me policiar dia após dia para não ser reprovada.
– Mas que loucura!
– Ignorante, ridícula, e agora louca... Basta! Não quero ouvir mais. Adeus.
(Em "A idade do bobo", p. 75)

Um comentário:

  1. Se eu tivesse de dar uma hipótese diagnóstica, seria TPM. É sempre ela!! =D

    Abraços e Feliz Natal

    =***

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A esquecida