terça-feira, 30 de outubro de 2012

A dúvida

Fechado no quarto, ruminava sua indignação. Que direito os pais tinham de lhe proibir a viagem? A alegação foi que ele estudava pouco, só queria viver pendurado na internet. Como as notas estavam baixas, só teria direito a viajar com os amigos quando melhorasse o boletim.
Pura birra! Ele estudava tão pouco quanto os colegas que agora se encaminhavam para Pipa, a fim de curtir um fim de semana cheio de sol, garotas, barezinhos incrementados. E não se achava tão vagabundo assim. Aprendia muito com os bate-papos na net. A atitude dos velhos era perseguição, pura perseguição! Não mereciam o filho que tinham.
Decidiu morrer. Era uma saída radical, mas nada lhe pareceu melhor para expressar o seu rancor. Um rancor fundo, misto de raiva e abandono. Tinha só 12 anos, mas sobrava-lhe dignidade. Não ia engolir aquela humilhação à toa. Com a morte, cravaria na consciência dos pais um remorso definitivo. Eles aprenderiam, com o tempo, a lhe dar valor. Mas aí seria tarde.
Subiu num banquinho e tirou a corda havia meses guardada no armário. Nunca soube por que a mãe pusera a corda ali, parecia coisa do destino. O plano era se enforcar atravessando-a no armador e pulando da cama. Morreria enforcado, sim senhor, como os grandes mártires da História. A mãe choraria por décadas, inconsolável, e odiaria o marido por não ter deixado o filho viajar. Tarde demais, ela também fora cúmplice.
Antes de morrer, decidiu escrever uma carta. Queria deixar registradas para a posteridade as razões do seu ato. Talvez o texto fosse publicado nos jornais, e ele se tornasse uma espécie de símbolo. Um símbolo do sacrifício dos filhos à intolerância paterna, ou algo assim.
A carta lhe pareceu mesmo uma boa ideia. Sentou-se na escrivaninha e começou: “Sei que o meu jesto...”. Jesto”? Ou gesto? Com “j” ou com “g”? Não sabia. E não queria correr o risco de errar, pois isso daria razão aos pais. Diziam que ele não estudava, era um vagabundo. Um erro ortográfico confirmaria esse mau juízo e tiraria o impacto do seu sacrifício.
E agora? “G” ou” j”? Incapaz de decidir, perdeu o ânimo para levar o plano adiante. Não tinha sentido morrer sem explicar o motivo. Pensariam que fora por uma razão banal, tipo dor de cotovelo. E sua morte teria sido em vão. Desalentado, guardou a corda e voltou para a cama. Viveria. E, sobretudo, iria estudar português.


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O poder da frase