segunda-feira, 3 de dezembro de 2012

Amigas

Clarice e Lisete pareciam ter vindo ao mundo para ser amigas. Conheceram-se ainda meninas; mal uma bateu os olhos na outra, sentiu o que se poderia chamar “lampejo de afinidade”.
Assistiam às aulas em cadeiras vizinhas, e nos intervalos não se despregavam. Tinham a mesma opinião sobre os professores e os colegas, que pareciam tão diferentes delas! A amizade as colocava num mundo à parte, onde não havia rusgas nem estranhamentos.
Cursaram juntas o primário e o ensino médio. Uma sofreu na carne a angústia da outra com o vestibular. Clarice fez para medicina; Lisete, para enfermagem. A primeira teve de enfrentar uma concorrência bem maior, mas foi Lisete quem ficou a ponto de contrair uma gastrite. Não aceitava passar e ver a amiga ficar de fora. No fim tudo deu certo, e alguns anos depois estavam formadas.
Clarice namorou mais do que Lisete e terminou se casando. Com Otávio. O rapaz só chegou ao coração de Clarice porque caíra nas graças da amiga, que se tornou sua aliada e frequentemente lhe enaltecia as virtudes. Lisete saía com os dois, não se constrangia em segurar vela. Como era muito recatada e não gostava de namoros, terminou ficando mesmo para tia -- tia dos filhos de Clarice, é claro. Sentia os meninos como se fossem seus.
Viveram, envelheceram, e morreram um dia. Curiosamente, em datas próximas, de modo que suas almas seguiram de mãos dadas para o outro mundo. O destino só podia ser o Céu. Concorreu para isso a fidelidade que uma dedicou à outra, a qual foi interpretada por Deus como pureza de coração.
Chegando diante Dele, Lisete se apressou em pedir:
-- Querermos continuar juntas.
-- Para quê? -- quis saber o Criador.
-- Para chorar nossas mágoas, confidenciar nossos segredos, aliviar nossos momentos de solidão.
Deus riu com infinita bonomia, depois ponderou:
--Não há mais necessidade disso, minhas filhas. Aqui não há mágoas a serem choradas nem segredos que justifiquem confidências. Todos vivem numa transparente e contínua harmonia. Tampouco vocês vão se sentir sós. A solidão vem do vazio, da ausência de Absoluto; não atinge quem vive na plenitude do espírito, como vocês agora.
Lisete e Clarice se entreolharam um tanto desapontadas; a amizade teria de acabar. Se era assim, não havia remédio. Soltaram-se as mãos e cada uma seguiu para o seu nicho celeste.
Estavam felizes, não havia dúvida, mas no fundo de suas almas havia uma pontinha de ressentimento, ou talvez de saudade. Lembravam os tempos em que sofriam e tinham o ombro uma da outra para aliviar a dor.

(Em "A idade do bobo", p. 42)
Leia o livro em
http://www.bookess.com/read/14324-a-idade-do-bobo

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A esquecida