domingo, 3 de fevereiro de 2013

O hino e as drogas

Dois eventos muito comentados nos últimos dias foram a execução do Hino Nacional pela cantora Vanusa, na Assembleia Legislativa de São Paulo, e a entrevista da atriz Fernanda Torres a Isto É.
Com voz sonâmbula e trôpega, Vanusa embaralhou os versos da pátria canção a ponto de fazer todo o Brasil rir. Nosso hino, com aquela enxurrada de inversões e termos pomposos, já não é fácil de compreender. Trocando palavras e confundindo imagens, a cantora o reduziu à máxima incongruência.
Houve quem visse em seu desempenho um caso pensado, como se ela quisesse chamar a atenção para a natural dificuldade da letra e, por meio disso, engrossar o coro dos que desejam modificá-la. Depois se esclareceu o episódio: Vanusa cantou obnubilada, pois estava sob o efeito de remédios.
Fernanda Torres trata de outro tipo de drogas. A atriz escreveu e está encenando uma peça sobre elas -- não apenas sobre, mas contra. Diz que experimentou maconha e cocaína, viveu o inferno a que substâncias como essas normalmente levam e agora sentiu a necessidade de fazer um alerta.
Sua entrevista é uma espécie de julgamento da geração que via nos “paraísos artificiais” uma forma de militância política e contestação dos valores burgueses. Naquele tempo, tomar droga era ser revolucionário e expandir os horizontes existenciais. Quem se recusava era alienado ou no mínimo careta. O preço pago por essa ilusão foi muitas vezes a neurose, a impotência sexual ou a loucura.
Hoje a atriz é casada, tem filhos e frequenta academias de ginástica. Procura levar uma vida saudável, mas sente remorso por estar se transformando numa pessoa “certinha” e exemplar. Parece que não superou de todo o patrulhamento que, em outros tempos, incitava-a a romper com os códigos sociais. Segundo essa antinorma, ser certo era ser errado; e cuidar da saúde, um execrável hábito burguês que alheava o indivíduo de experiências fundamentais. Quanto mais autodestrutivo ele fosse, mais “profundo” e respeitável.
O desempenho de Vanusa e a entrevista de Fernanda levaram-me de volta aos anos 1960, quando não apenas se consumiam drogas como se cantava muito o Hino Nacional. Eu confesso que não tinha jeito para nenhuma das duas coisas. Menos por medo e mais por instinto de preservação, nunca experimentei maconha, cocaína, LSD ou qualquer desses passaportes mágicos para a transcendência. Sentia-me por causa disso um excluído, uma espécie de marginal da marginalidade, mas hoje não me arrependo das ofertas que recusei.
Quanto ao hino, era difícil cantá-lo por obrigação e, sobretudo, para exaltar a ditadura vigente. Quando nos reuníamos no pátio do Liceu com o intuito de fazer isso, meu peito “inchava” de má vontade e da boca não saía nada. O silêncio era uma forma surda de militância, uma maneira de recusar o que estavam fazendo com o País.
O melhor de ter ouvido as duas mulheres é constatar que o tempo passou. Fernandinha reconhece, com franqueza e coragem, o engodo de que foi vítima toda uma geração. E Vanusa não foi presa por, mesmo sem culpa, desrespeitar um símbolo nacional.

("A idade do bobo", p. 91)
Leia o livro completo em http://www.bookess.com/read/14324-a-idade-do-bobo

 

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