Foi numa Quinta-Feira Santa. Eu me sentia como deve se sentir todo bom cristão: triste, cabisbaixo, lutuoso, pois se comemorava o aniversário d’Aquele que morrera por nós.
Minha mãe não proibia que ríssemos, mas se tornava grave, e a tendência da família era acompanhar esse estado de ânimo. Era pecado rir, brincar, comer carne. Nos meus dez anos eu seguia essas prescrições com um rigor dramático, quase pânico. Tinha medo de que, desobedecendo a elas, minha alma viesse a arder no inferno.
Vez por outra meu tio nos visitava nos feriados. Era comum, então, que me trouxesse um presente. Podia ser bombons, chocolate ou um brinquedo. Nessa quinta-feira ele apareceu escondendo um grande pacote atrás da batina. Não sei o que lhe deu na telha, pois o dia era impróprio para surpresas.
Semanas antes, eu notara na feira um brinquedo que me encantou. Naquele tempo não havia iPod, videogame, MP4 e outros artefatos eletrônicos que fascinam os jovens de hoje. A gente se empolgava com coisas simples – piões, corujas, carrinhos de rolimã.
O brinquedo a que me referi era um caminhão de madeira. Para guiá-lo não se usava barbante; da boleia saía uma haste fina, com cerca de quarenta centímetros, em cujo extremo superior havia uma direção. Sim senhor, uma direção quase igual à dos carros de verdade.
A surpresa que meu tio me fazia era justamente o caminhão. Mal o presente saiu do embrulho, meus olhos gritaram de alegria. Só os olhos, pois a boca teve de permanecer muda. O dia não era adequado a gritos nem a outras expansões da alma. A alma tinha que ficar chorosa e contrita em memória d’Aquele que morrera para nos salvar.
Fui para o quintal com o caminhão e comecei a dirigi-lo. Simulei grandes percursos, fingindo-me um motorista real. Buzinava, freava, cortava outros carros. Estava contente, mas não feliz. Ao prazer juntava-se o remorso. Parecia que do fundo escuro do tempo o Salvador me espreitava com olhos recriminadores. E não deixava de ter razão; eu não estava retribuindo à altura o seu Sacrifício.
Confortei-me um pouco atribuindo a culpa a meu tio. Por que ele não aparecera lá em casa uns dois dias depois? O caminhão era presente para sábado de Aleluia. Tivesse meu tio adiado a visita, juntava-se a minha euforia de menino com a alegria da Ressurreição -- e tudo teria saído perfeito.
(Em "A rosa fenecida", p. 53; leia o livro em http://www.bookess.com/read/14343-a-rosa-fenecida)
Minha mãe não proibia que ríssemos, mas se tornava grave, e a tendência da família era acompanhar esse estado de ânimo. Era pecado rir, brincar, comer carne. Nos meus dez anos eu seguia essas prescrições com um rigor dramático, quase pânico. Tinha medo de que, desobedecendo a elas, minha alma viesse a arder no inferno.
Vez por outra meu tio nos visitava nos feriados. Era comum, então, que me trouxesse um presente. Podia ser bombons, chocolate ou um brinquedo. Nessa quinta-feira ele apareceu escondendo um grande pacote atrás da batina. Não sei o que lhe deu na telha, pois o dia era impróprio para surpresas.
Semanas antes, eu notara na feira um brinquedo que me encantou. Naquele tempo não havia iPod, videogame, MP4 e outros artefatos eletrônicos que fascinam os jovens de hoje. A gente se empolgava com coisas simples – piões, corujas, carrinhos de rolimã.
O brinquedo a que me referi era um caminhão de madeira. Para guiá-lo não se usava barbante; da boleia saía uma haste fina, com cerca de quarenta centímetros, em cujo extremo superior havia uma direção. Sim senhor, uma direção quase igual à dos carros de verdade.
A surpresa que meu tio me fazia era justamente o caminhão. Mal o presente saiu do embrulho, meus olhos gritaram de alegria. Só os olhos, pois a boca teve de permanecer muda. O dia não era adequado a gritos nem a outras expansões da alma. A alma tinha que ficar chorosa e contrita em memória d’Aquele que morrera para nos salvar.
Fui para o quintal com o caminhão e comecei a dirigi-lo. Simulei grandes percursos, fingindo-me um motorista real. Buzinava, freava, cortava outros carros. Estava contente, mas não feliz. Ao prazer juntava-se o remorso. Parecia que do fundo escuro do tempo o Salvador me espreitava com olhos recriminadores. E não deixava de ter razão; eu não estava retribuindo à altura o seu Sacrifício.
Confortei-me um pouco atribuindo a culpa a meu tio. Por que ele não aparecera lá em casa uns dois dias depois? O caminhão era presente para sábado de Aleluia. Tivesse meu tio adiado a visita, juntava-se a minha euforia de menino com a alegria da Ressurreição -- e tudo teria saído perfeito.
(Em "A rosa fenecida", p. 53; leia o livro em http://www.bookess.com/read/14343-a-rosa-fenecida)
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