sábado, 30 de março de 2013

Oração pelos peixes

Sempre me intrigou que na Semana Santa não se pudesse comer carne, mas se pudesse comer peixe. A carne dos peixes se exclui dessa restrição, embora nossos irmãos do mar sejam tão animais quanto a vaca ou o carneiro. É uma carne mais saudável do que as outras quanto à qualidade da gordura, mas certamente não foi por isso que a Igreja liberou seu consumo em ocasiões como agora. No tempo em que se fixaram essas normas, ninguém tinha ideia do que era colesterol.
Como faz bem tanto ao corpo quanto ao espírito, o peixe é comido sem remorso ao longo de todo o ano. Dos animais não nocivos ao homem, ele é certamente aquele para o qual menos se dirige a nossa piedade. Vejo e ouço protestos contra a morte violenta de bois, carneiros, raposas, ursos, mas raramente escuto uma voz contra a matança dos peixes.
E olhem que a morte deles é uma das mais dolorosas. Ao contrário dos bois ou dos carneiros, que morrem de uma cutelada fulminante e indolor, os peixes se finam aos poucos, em tremores de agonia devido à falta de oxigênio. Matamo-los por necessidade e por lazer – para satisfazer nossas necessidades proteicas e para aliviar as tensões em longas e solitárias pescarias.
Por ser a única comida animal permitida nesta época, o peixe ocupa um lugar de destaque no bestiário cristão. Seu sacrifício é um pouco como o de Cristo, que morreu para nos servir de alimento espiritual. Mas nem sempre foi assim.
No Sermão de Santo Antônio ou dos Peixes, Vieira afirmar querer aliviar os peixes “de um desconsolo muito antigo”: o de não estarem, segundo a Lei eclesiástica, entre os animais que Deus escolheu para serem a ele sacrificados. O motivo dessa exclusão, segundo o jesuíta, é que os peixes só podiam ir ao sacrifício mortos, “...e coisa morta não quer Deus que se lhe ofereça, nem chegue aos seus altares”.
É claro que há nessa passagem, como em todo o sermão, um sentido alegórico. Vieira finge se referir aos peixes mas na verdade se refere aos homens, pois a “coisa morta” significa o ser humano em pecado mortal. Mas não deixa de ser curioso que a imagem do peixe sem vida, em vez de suscitar piedade, sirva para simbolizar o indivíduo sem fé.
Quanto à recusa em levá-lo ao altar por ir ao sacrifício morto, há nisso uma ironia histórica: em respeito às leis da Igreja, hoje só ele se sacrifica. Ou não será sacrifício servir de alimento único, nestes dias, para matar a fome de toda a cristandade?
Pelo sim, pelo não, mais respeito com os peixes. Certamente ficamos indiferentes ao seu sofrimento porque, ao contrário dos outros bichos, eles ao serem mortos não gemem, não berram nem clamam com o olhar. Mas isso não significa que sofram menos. Enfim, já que o momento é de piedade cristã, façamos pelos peixes uma prece silenciosa. Nem que seja para agradecer a boa digestão.

(Em "A rosa fenecida, p. 83)
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O silêncio do inocente