Algumas lembranças decisivas de minha infância ligam-se ao velho Colégio Diocesano Pio XI, de Campina Grande. Lá fiz o admissão e cursei uma parte do primário. O Pio XI era dirigido pelo meu tio Emídio Viana, que liderava a família vinda de Santa Rita. Graças a uma carta de minha avó, mulher religiosa e que se correspondia com várias autoridades da Igreja, Emídio conseguiu, da diocese, autorização para explorar o ensino naquele colégio. Ele dirigia, e o restante da família (inclusive o meu avô) completava-o na administração ou no magistério.
Foi no Pio XI que recebi os primeiros estímulos para o que seria, depois, o meu ofício – ensinar. Não que ali tivessem me dado alguma instrução especial no domínio das letras, das ciências ou das artes. Os impulsos a que me refiro foram espontâneos, de ordem sobretudo afetiva, e se imprimiram involuntariamente no menino que eu era. Decorreram do que eu via, do que eu notava, do que inconscientemente selecionava num ambiente onde se falava de aulas, livros, reunião de professores.
Esse tipo de influência, como sabem, é decisivo. Ele se impregna de modo profundo no mais íntimo e fundamental de nós. Imagino que a minha resistência em ser médico, a qual me faz largar o curso no quarto ano, decorreu de um apelo comandado pelas lembranças, pelas vivências, pelas impressões plantadas em mim naquela época. Acho que devo ao Pio XI, onde primeiro vi os protagonistas de uma sala de aula, o fascínio por esse teatro sem drama que é o magistério.
Mas o melhor de estudar no Pio XI era percorrer seus velhos corredores e salas com a liberdade de sobrinho do diretor – ou sobrinho do padre, como se dizia. Nos intervalos das aulas, eu entrava na cantina e comia bolo, chupava bombons, bebia refrigerantes – tudo sem limites e sem pagar. O limite era o meu próprio estômago, ou os ressentidos intestinos, que às vezes reagiam a tais excessos da maneira dolorosa e deprimente que se conhece. Mal me curava da dor de barriga, contudo, eu voltava ao doce com o apetite próprio de menino.
O velho Pio XI funcionava num prédio imenso, com um primeiro andar semiabandonado cujo piso era revestido de madeira. Numa das alas desse primeiro andar morava o padre, sozinho. O restante era composto de espaços mortos, com restos de carteiras, birôs, quadros-negros – lembranças de cursos que não existiam mais. Um desses espaços era ocupado por uma biblioteca esparramada e quase desfeita, com títulos atraentes como Os três mosqueteiros, Os miseráveis, O Corcunda de Notre-Dame. Lembro-me de que passava horas ali, em concentrado exílio matinal ou vespertino, folheando os livros e sonhando menos com a aventura de vivê-los que de os escrever.
Imagino que data desse tempo o meu fascínio pela literatura. A imagem daqueles títulos, com o seu colorido variado e misterioso; o enigma das páginas impressas, sugerindo uma outra dimensão da vida – reflexo e, ao mesmo tempo, superação da experiência existencial, com a imprescindível abertura para o sonho e o ilimitado – tudo isso, que hoje o adulto verbaliza com mais clareza, insinuou-se em meu espírito, com uma mágica força de apelo, a partir dos fragmentos daquela biblioteca. Tal como o prédio do colégio, ela era ao mesmo tempo nova e velha. E tudo ali se constituía numa curiosa mistura de atualidade e escombros. Hoje percebo que isso, mais do que qualquer outra coisa no Pio XI, maravilhava o menino que eu fui.
O padre Emídio era gordo, avermelhado, e ostentava na voz e no porte essa qualidade preciosa num educador, e sobretudo num diretor de escola, chamada força moral. Os alunos queriam tudo, menos ouvir aquele chamado característico – “Caboclo!” – e ter que se explicar na diretoria. Ali, diante da batina inflexível, ninguém ousava sequer gemer. O padre impunha respeito e silêncio. Um dos pavores da gurizada era, por mau comportamento, ficar em pé de castigo numa saleta anexa ao gabinete do diretor, na qual havia um esqueleto destinado às aulas de anatomia.
Espécie de câmara de tortura moral, o pior de estar ali não era aguentar o olhar desorbitado da caveira. Isso era pouco, era quase nada diante da tortura maior: ser surpreendido, naquela solidão de delinquente, pelo meu tio Emídio. Quem lá ficava torcia para que ele ou estivesse fora, pois dava aulas de latim no Colégio Estadual, ou não saísse da diretoria pelos longos minutos que durassem o suplício.
Penso que o esqueleto fora colocado ali de propósito, a fim de aumentar a opressão do infrator. Imagem concreta da morte, estava ali para zombar dos que não queriam nada com a vida. Com o seu sorriso estático e sem alma, parecia comentar: “Olha para mim, vândalo. Vê o destino que te aguarda e procura ser correto e decente nos teus atos. Amanhã serás eu e já não poderás lamentar aquilo que, por indisciplina e irresponsabilidade, fizeste da tua vida.”. E o delinquente, enquanto purgava o seu castigo, só tinha duas alternativas: olhar a face neutra da parede, imagem do tempo que não passa, ou o rosto esquálido da morte, que o espreitava com um sorriso irônico.
Houve um dia em que me excedi nas brincadeiras e a professora não teve dúvida. Mandou-me ficar em pé na saleta fatídica. De nada valeu a prerrogativa de ser sobrinho do diretor; a disciplina era para todos. Levantei-me acabrunhado, as faces em fogo, e trôpego fui me postar entre a parede e o esqueleto. O que me apavorava, mais do que aos outros, era que o tio me visse ali. A saleta era abafada e sombria; houve um momento em que me refresquei no meu próprio suor. De onde estava, via o tio Emídio na sala vizinha, lendo uns papéis ou conversando, a intervalos, com o pessoal da secretaria. Meu pavor era que ele se levantasse e fosse fazer a ronda nos corredores, conforme era seu hábito.
E foi o que fez em dado momento, pois hábito não se muda mesmo. Levanta-se, olha o relógio, e de repente a batina esvoaça rente a mim e prossegue, rumo aos corredores. Na passagem, desloca um vento que me provoca um calafrio. Tudo indica que não me viu – nem quando esteve de volta, minutos depois, o rosto olhando para a frente. No entanto, sei que isso não é verdade. Ele me notou e fingiu não me ver.
Fiquei devendo isso a Emídio. Por sua afeição, por seu respeito ao sobrinho estimado, saí incólume daquele suplício moral. E à saleta nunca mais voltei.
(Em “A rosa fenecida”, p. 113. Leia o livro completo em http://www.bookess.com/read/14343-a-rosa-fenecida)
Foi no Pio XI que recebi os primeiros estímulos para o que seria, depois, o meu ofício – ensinar. Não que ali tivessem me dado alguma instrução especial no domínio das letras, das ciências ou das artes. Os impulsos a que me refiro foram espontâneos, de ordem sobretudo afetiva, e se imprimiram involuntariamente no menino que eu era. Decorreram do que eu via, do que eu notava, do que inconscientemente selecionava num ambiente onde se falava de aulas, livros, reunião de professores.
Esse tipo de influência, como sabem, é decisivo. Ele se impregna de modo profundo no mais íntimo e fundamental de nós. Imagino que a minha resistência em ser médico, a qual me faz largar o curso no quarto ano, decorreu de um apelo comandado pelas lembranças, pelas vivências, pelas impressões plantadas em mim naquela época. Acho que devo ao Pio XI, onde primeiro vi os protagonistas de uma sala de aula, o fascínio por esse teatro sem drama que é o magistério.
Mas o melhor de estudar no Pio XI era percorrer seus velhos corredores e salas com a liberdade de sobrinho do diretor – ou sobrinho do padre, como se dizia. Nos intervalos das aulas, eu entrava na cantina e comia bolo, chupava bombons, bebia refrigerantes – tudo sem limites e sem pagar. O limite era o meu próprio estômago, ou os ressentidos intestinos, que às vezes reagiam a tais excessos da maneira dolorosa e deprimente que se conhece. Mal me curava da dor de barriga, contudo, eu voltava ao doce com o apetite próprio de menino.
O velho Pio XI funcionava num prédio imenso, com um primeiro andar semiabandonado cujo piso era revestido de madeira. Numa das alas desse primeiro andar morava o padre, sozinho. O restante era composto de espaços mortos, com restos de carteiras, birôs, quadros-negros – lembranças de cursos que não existiam mais. Um desses espaços era ocupado por uma biblioteca esparramada e quase desfeita, com títulos atraentes como Os três mosqueteiros, Os miseráveis, O Corcunda de Notre-Dame. Lembro-me de que passava horas ali, em concentrado exílio matinal ou vespertino, folheando os livros e sonhando menos com a aventura de vivê-los que de os escrever.
Imagino que data desse tempo o meu fascínio pela literatura. A imagem daqueles títulos, com o seu colorido variado e misterioso; o enigma das páginas impressas, sugerindo uma outra dimensão da vida – reflexo e, ao mesmo tempo, superação da experiência existencial, com a imprescindível abertura para o sonho e o ilimitado – tudo isso, que hoje o adulto verbaliza com mais clareza, insinuou-se em meu espírito, com uma mágica força de apelo, a partir dos fragmentos daquela biblioteca. Tal como o prédio do colégio, ela era ao mesmo tempo nova e velha. E tudo ali se constituía numa curiosa mistura de atualidade e escombros. Hoje percebo que isso, mais do que qualquer outra coisa no Pio XI, maravilhava o menino que eu fui.
O padre Emídio era gordo, avermelhado, e ostentava na voz e no porte essa qualidade preciosa num educador, e sobretudo num diretor de escola, chamada força moral. Os alunos queriam tudo, menos ouvir aquele chamado característico – “Caboclo!” – e ter que se explicar na diretoria. Ali, diante da batina inflexível, ninguém ousava sequer gemer. O padre impunha respeito e silêncio. Um dos pavores da gurizada era, por mau comportamento, ficar em pé de castigo numa saleta anexa ao gabinete do diretor, na qual havia um esqueleto destinado às aulas de anatomia.
Espécie de câmara de tortura moral, o pior de estar ali não era aguentar o olhar desorbitado da caveira. Isso era pouco, era quase nada diante da tortura maior: ser surpreendido, naquela solidão de delinquente, pelo meu tio Emídio. Quem lá ficava torcia para que ele ou estivesse fora, pois dava aulas de latim no Colégio Estadual, ou não saísse da diretoria pelos longos minutos que durassem o suplício.
Penso que o esqueleto fora colocado ali de propósito, a fim de aumentar a opressão do infrator. Imagem concreta da morte, estava ali para zombar dos que não queriam nada com a vida. Com o seu sorriso estático e sem alma, parecia comentar: “Olha para mim, vândalo. Vê o destino que te aguarda e procura ser correto e decente nos teus atos. Amanhã serás eu e já não poderás lamentar aquilo que, por indisciplina e irresponsabilidade, fizeste da tua vida.”. E o delinquente, enquanto purgava o seu castigo, só tinha duas alternativas: olhar a face neutra da parede, imagem do tempo que não passa, ou o rosto esquálido da morte, que o espreitava com um sorriso irônico.
Houve um dia em que me excedi nas brincadeiras e a professora não teve dúvida. Mandou-me ficar em pé na saleta fatídica. De nada valeu a prerrogativa de ser sobrinho do diretor; a disciplina era para todos. Levantei-me acabrunhado, as faces em fogo, e trôpego fui me postar entre a parede e o esqueleto. O que me apavorava, mais do que aos outros, era que o tio me visse ali. A saleta era abafada e sombria; houve um momento em que me refresquei no meu próprio suor. De onde estava, via o tio Emídio na sala vizinha, lendo uns papéis ou conversando, a intervalos, com o pessoal da secretaria. Meu pavor era que ele se levantasse e fosse fazer a ronda nos corredores, conforme era seu hábito.
E foi o que fez em dado momento, pois hábito não se muda mesmo. Levanta-se, olha o relógio, e de repente a batina esvoaça rente a mim e prossegue, rumo aos corredores. Na passagem, desloca um vento que me provoca um calafrio. Tudo indica que não me viu – nem quando esteve de volta, minutos depois, o rosto olhando para a frente. No entanto, sei que isso não é verdade. Ele me notou e fingiu não me ver.
Fiquei devendo isso a Emídio. Por sua afeição, por seu respeito ao sobrinho estimado, saí incólume daquele suplício moral. E à saleta nunca mais voltei.
(Em “A rosa fenecida”, p. 113. Leia o livro completo em http://www.bookess.com/read/14343-a-rosa-fenecida)
Obrigada por compartilhar sua história conosco, professor!
ResponderExcluirPois é, Jackelinne. Aquele castigo me marcou. Só depois, adulto, fui perceber isso...
ResponderExcluirGrato pelo comentário.