Seu
Aderson era um velho amigo da família. Costumava nos visitar pelo menos uma vez
por mês, geralmente aos domingos, quando ficava para o almoço. Vestia-se com a
elegância que o salário da prefeitura permitia. Embora não fosse de sorriso
fácil, parecia de bem com a vida.
Sempre que entrava em nossa casa e lhe
perguntávamos como estava, Seu Aderson respondia: “- Vou escapando.” Eu era muito
pequeno e não entendia bem o significado daquilo. Escapando... de quê? Ouvira
algumas vezes essa palavra e me acostumara a lhe dar um valor exagerado. Quando
falavam sobre desastres, por exemplo, diziam que houvera tantas vítimas e um ou
outro tinha escapado. Em alguns casos, não escapara ninguém!
Isso fazia com que a palavra tivesse para
mim um odor de tragédia. E lá vinha Seu Aderson banalizar-lhe o sentido,
usando-a numa situação comum. O que ele tinha vivido de tão perigoso para dizer
que ia escapando?
O velho morreu faz tempo (disso não
escapou) e eu continuo por aqui. Vivo num mundo algumas décadas diferente
daquele em que ele viveu, e sempre que me perguntam como estou indo o meu impulso
é o de repetir suas palavras: “- Vou escapando .” E não digo isso por força de
expressão.
Ultrapassar mais um dia nos tempos atuais é
sobreviver a uma série de combates e riscos. Quem consegue, escapou. O que
diria Seu Aderson caso hoje lhe fosse exigido, por exemplo, percorrer as ruas
da cidade à noite? Quem sai de casa nem sempre tem a certeza de voltar. As
drogas e a bandidagem tornam qualquer percurso noturno uma aventura cujas
consequências ninguém imagina. Ou imagina, sim, e por isto sai temeroso, deixando
a família inquieta. Nunca pareceu tão verdadeira a conhecida frase de Guimarães
Rosa: “Viver é perigoso.”
Já se começa o dia cercado por
expectativas ameaçadoras. As primeiras manchetes dos jornais impressos ou
televisivos são de violência. Vizinhos assassinam vizinhos, pais matam filhos
(ou vice-versa), torcedores se trucidam nos estádios. Parece que o mundo se
transformou num grande açougue, e ninguém está livre de ser abatido na próxima
esquina. Dizer que os bandidos venceram a guerra contra a polícia virou um lugar-comum
que aceitamos como uma irônica fatalidade.
A violência não vem só dos marginais, ou
seja, não se alimenta apenas da desigualdade social. Entre pessoas da mesma
classe também é grande o furor, a intolerância, o impulso de agredir por
qualquer motivo. Parece que um enervamento sistemático corre em nossas veias. E
o trânsito, com o perdão do trocadilho, é em grande parte o veículo dessa
hostilização. Há carros demais, motos demais, gente demais querendo ir ao mesmo
lugar na mesma hora.
Seu
Aderson não tinha carro, andava a pé, o que sem dúvida lhe tornava mais fácil
ir escapando. Nos dias de hoje há mais apelos e desafios. Escapar exige o
concurso de todos os sentidos e também o bafejo da sorte. Num mundo em que a violência
ultrapassou de muito os limites da racionalidade, voltamos a depender do
destino para ganhar mais um dia.
Nenhum comentário:
Postar um comentário