terça-feira, 3 de janeiro de 2017

Palavras e palavrão

Nosso destino é circular entre palavras. A sensibilidade a elas varia de pessoa para pessoa, mas o homem só se reconhece por meio da representação verbal. Há os que as amam e os que as desprezam (com medo da sua carga de verdade); os que por meio delas procuram o sentido e os que, descrentes, procuram o sentido nas coisas.
Esses estão mais próximos do Nada. Ou da ausência de Deus, pois Deus é por excelência a Palavra, o signo absoluto, que só pôde ser criado a partir do desmesurado vazio. Mesmo essa ideia de vazio é metafórica, o que prova que só se pode pensar o sentido por meio do verbo. Fora da linguagem não há enredo que nos aponte a salvação.  
Circular entre palavras é ter com elas, desde o início, uma relação não só intelectual como também afetiva. É ouvi-las e também senti-las, cheirá-las. Às vezes temê-las também pelo que há nelas de abscôndito e sinuoso.  O que intimida a criança diante do adulto é não compreender o sentido de certos termos. A criança, como diz Lacan, não tem o falo (ou seja, não tem a fala) e se reconhece impotente por isso.   
Fiquei intrigado, já lá vão muitos anos, quando vi meu pai sorrir com deleite ao ouvir pelo rádio um político dizer “minimizar”. O que havia de interessante em “minimizar”? Por que essa devia ser, naquele momento, a palavra adequada – tão certeira que provocou o sorriso espiritual do meu pai? Eu não conseguia entender e senti-me derrotado, mais criança do que realmente era. No dia em que descobri o que ela queria dizer, experimentei uma espécie de triunfo.
Preocupamo-nos com as nossas relações com as pessoas, mas ninguém se interessa muito por seu comércio com as palavras. Por que não parar um pouco e tentar escrever as memórias de nossas experiências verbais? Quem fizer isso constatará que, a cada signo aprendido, vai-se alargando a sua percepção do mundo e, sobretudo, de si mesmo. 
Desnecessário é dizer que esse comércio envolve um lado nobre e também um lado negro, representado pelas expressões pornográficas. O aprendizado desse último é chocante e nos precipita em alguns tormentos morais. Aprender a palavra feia é um pouco aceitá-la, confundir-se com ela, perder a virgindade quanto a certos inconfessáveis propósitos humanos. 
Lembro-me de que fomos vizinhos de um pessoal mal-educado, que não poupava nem eles mesmos das chamadas expressões chulas (este adjetivo sempre me sugeriu mau cheiro, o chulé da linguagem). Numa discussão com os tais vizinhos ouvi um termo que, desde então, ficou soando para mim como o grande palavrão da língua.
O impacto do termo, que obviamente eu não sabia o que significava, deveu-se em parte ao horror da minha mãe. Convivi dias com essa palavra impenetrável e terrível, que se alternava em meus devaneios noturnos com a confortadora luminosidade do santo-anjo rezado antes de dormir.  Era tudo uma questão de semântica; o termo chulo, com a sua fonética enigmática e rude, aparecia como a antítese do anjo, o outro lado da salvação.
Nem muitos anos depois, quando estudando Medicina deparei-me em Anatomia com a expressão “saco escrotal”, livrei-me da angustiante impressão que aquele termo provocara em mim. E olhem que tomei contato com muitos outros, “cabeludos” e terríveis – sobretudo no início da adolescência, quando o uso de palavrões é uma espécie de senha para ser aceito pela turma.
A experiência do palavrão é um triste mas necessário acidente de percurso. Geralmente modelado em partes pouco nobres da anatomia, ele confirma a intranscendente animalidade do nosso corpo, que pela palavra feia se revela mortal.

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O silêncio do inocente