quinta-feira, 24 de agosto de 2017

A voz do coração

       Hoje ela mais escuta do que fala. É o contrário do que costumava acontecer, já que ela sempre falou muito. E os filhos precisavam de suas palavras. Eram o resultado de seus conselhos, advertências, ralhações. Frutos não apenas biológicos, mas também espirituais. Nem tudo era acatado ou compreendido. Precisou de tempo para que entendessem a intenção, o sentido, o valor do que ela dizia.   
      Hoje o seu mutismo, ou quase isso, é uma espécie de prêmio. Ela já disse tudo o que tinha a dizer e pode se dar ao luxo de silenciar. Ou falar o que quer, no contexto em que quer, numa espécie de automatismo que no fundo é uma prova de liberdade. Liberta de dizer o que deve, pois isso fazia parte da sua missão, ela reconquistou o direito ao murmúrio e ao devaneio. 
       Sua fala é um tecido esgarçado de lembranças, anseios imprecisos, temores que o tempo ainda não desfez. A voz emerge lenta, aos poucos, como se sobreviesse de um tumulto interior. Às vezes estanca, suspende-se no ar. Isso leva a se querer completar o sentido, que não é necessariamente o que ela pretendia -- mas pouco importa: o elo falso encadeia novas associações, que geram outros sentidos.
    Todos válidos, pois hoje o seu espírito recusa a exclusão. Assim é que uma recordação do dia anterior se confunde com uma lembrança muito antiga. Um muro em frente a onde ela mora torna-se a parede da casa onde viveu na infância. Um amigo da família se superpõe à imagem de um parente que já morreu. Com isso, ela resgata o tempo e os mortos. Cria uma eternidade em que também se inclui.
       Passa a maior parte do tempo vendo televisão, ou sentada junto à mesa. Depois de tantos anos, ganhou o direito de apenas observar o movimento da casa -- ela que fazia tudo, decidia tudo. Ninguém já lhe pergunta o que deve ser feito, mas sabe que ela é a origem do caminho que cada um trilhou. Seu atual sossego tem muito do dever cumprido. Se pudesse, faria mais. Talvez não voltasse à máquina de costura, que abandonou há tempos, mas ainda estaria indo a bancos, feiras, supermercados, e talvez riscando a planta de uma nova casa (chegou a construir três).
        O curioso é que mesmo lacônica, por vezes silenciosa, ela é o centro da casa. Um centro do qual se irradia uma sensação de conforto e paz. Quando recebe filhos, netos, bisnetos, genros ou noras, os olhos são a melhor expressão da sua alegria, que desabrocha num sorriso largo. Ela em verdade não precisa desses momentos para sorrir; fez do humor o doce invólucro da sua sensibilidade. Ri do que vê, do que ouve, até do que diz, com uma candura e um despojamento de quem tem a alma cheia de graça.
       Essa disposição tranquiliza os que a cercam. Torna-a imune às contrariedades da vida e alimenta a convicção de que ainda vão tê-la por muitos anos. Se ela hoje influi pouco nas coisas práticas, não deixa de ter um importante papel emocional: continuar vivendo. Permanecer entre os que a amam até que se habituem à dor de um dia perdê-la. Como sempre foi generosa, não há dúvida de que fará isso de boa vontade. Com a largueza do seu coração de mãe.


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O silêncio do inocente