Esta
noite pode não ser feliz como reza a letra da música. Pode não ser de paz
conforme está nos cartões natalinos – mas é, sem dúvida, uma noite de trégua.
Com parentes, amigos (ou, na falta deles, com alguns velhos fantasmas),
celebraremos emocionados esse armistício do espírito. Cansados de errar e de
correr, teremos algumas horas de recolhimento diante da árvore iluminada, em
volta da qual haverá frutos nada inocentes. Frutos que serão dádivas mais do
bolso, que do coração.
Envolvido com suas compras e com seus
cartões, imagino que o leitor ainda não se deu conta do que se poderia chamar
“o paradoxo litúrgico do Natal”; nem por ser a data do nascimento de Cristo, o
evento deixa de ter as suas contradições. Pois é a festa do Salvador, mas
celebrada por homens. Se por liturgia entendermos todo esse ritual profano de
correrias e atropelos, é fácil perceber quanto ele nega a essência do espírito
natalino, que pressupõe recolhimento e contemplação. Mal entra dezembro,
transfiguramo-nos em pechincheiros fanáticos, em corredores compulsivos em
busca das melhores ofertas – pois ninguém pode nem deve ser esquecido. E na
lista não entram somente os da nossa estima, mas todos com que temos alguma
espécie de relação – formal ou informal, direta ou indireta, próxima ou remota.
Há quem diga que tem de ser assim, pois
o presente ou o dinheiro quantificam materialmente o afeto. Como externar o
sentimento senão através de objetos,
possuam eles ou não alguma utilidade? Quem ama dá. O problema é que, no Natal,
a doação deixa de ser espontânea e vira motivo de cobrança. Nesta época,
fustigados pelo comércio e pelos meios de comunicação, somos levados a dar
indiscriminadamente, sem escolher objetos ou destinatários.
Justiça seja feita, a cada ano o
comércio se excede na organização do evento. A profusão de ofertas nos coloca
no canto da parede, destruindo-nos todos os álibis e todos os escrúpulos. Com
tal diversidade de produtos e de preços, como não comprar? O nosso afeto é
precário, o nosso bolso é curto, o nosso coração insuficiente para tal
variedade. Por mais que venhamos a consumir, sentimo-nos impotentes e em débito
– não apenas com os comerciantes e industriais, mas com os que devem ser objeto
de nossa generosidade. Há tanto mimo barato, tanta coisa insignificante e
tentadora, que o nosso impulso é o de presentear o mundo todo. E comprar de
preferência o fútil, por um misterioso automatismo do corpo e da alma.
Nesses tempos de dureza e desatino, o
consumo é uma forma de prece. E, não por acaso, o presépio deixou a igreja e se
instalou, com todas as glórias e luzes, nas dependências do shopping center. Há nisso uma
contradição estética e sobretudo ética, pois o lugar do Cristo menino é onde
ele venha a ser cultuado com respeito e, sobretudo, com humildade. No shopping, o presépio é mais um adorno
profano, um artefato mercadológico que não se distingue de outros recursos para
nos fazer comprar.
Mas deixemos de lamúrias e aceitemos os
fatos. Tratemos de viver o Natal possível, e não o Natal que satisfaça nosso
ideal de perfeição. Em meio a esse tumulto aquisitivo, que faz de Papai Noel um
indecente garoto-propaganda, contentemo-nos com o afeto mínimo, com a disponibilidade
esquiva, com a bondade possível em seres tão confusos e perdidos – tentados
pelo bem e pelo mal. Se fôssemos capazes de coisa melhor, certamente não
teríamos necessidade de Deus.
Na manjedoura está o Menino, que veio
ao mundo para testemunhar nosso fracasso. Mas também para constituir uma
referência, um guia. É tão difícil ao homem atendê-Lo quanto negá-Lo. E por que
negá-Lo? Cristo é a doce e misteriosa tentação do bem.
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