sábado, 30 de dezembro de 2017

"Roda Gigante" é um Woody Allen dos bons

Um dos temas do filme de Woody Allen é o teatro – mais precisamente o teatro grego e alguns de seus rebentos modernos. A dimensão trágica está representada pela personagem Ginny (magnificamente interpretada por Kate Winslet), que se debate entre o desejo e a culpa, e cujas escolhas vão determinar o destino de várias pessoas ao seu redor.  
Ginny vive com Humpty (Jim Belushi), funcionário de um carrossel num parque de diversões. Ele é um ex-alcoólatra pouco refinado e, por sua fragilidade emocional, está sempre na iminência de retornar ao vício. O que lhe dá um precário equilíbrio é Ginny (que se ligou a ele depois de trair o primeiro marido) e a filha Carolina (Juno Temple), que havia rompido com o pai por este não aceitar o seu casamento com um mafioso mas acaba se reconciliando com ele. A moça está ameaçada de morte justamente por ter se decepcionado com o gângster e revelado à polícia algumas das suas tramoias. 
Ginny vive insatisfeita com o novo casamento (a imagem do carrossel, homóloga à da própria roda gigante, é um símbolo de monotonia e repetitividade na vida conjugal). Ela tem um caso com Mickey (Justin Timberlake), que trabalha como salva-vidas na praia. Mickey por sinal é quem narra a história, desempenhando a função exercida na tragédia grega pelo coro. Escritor, ele sonha um dia ser famoso escrevendo grandes peças teatrais. A identificação com o teatro (além da juventude e da beleza dela, claro) leva-o a se aproximar de Carolina. Os dois se apaixonam, e Carolina faz confidências sobre isso a Ginny, que a partir de então disputa com a enteada (sem esta saber) o amor do mesmo homem.
Os diálogos do filme não têm uma das marcas de Woody Allen, que são as tiradas de humor, mas elas não fazem falta. A trama engenhosamente urdida deixa o espectador em suspenso do início ao fim. Sublinha a tensão narrativa o apelo a símbolos como o da roda gigante – imagem nietzschiana do eterno retorno – e o do fogo, um clássico símbolo de destruição. Ele aparece na pirotecnia de Richie (Jack Gore), filho do primeiro casamento de Ginny e cujo pai se suicidara ao tomar conhecimento da traição da mulher.
Na sequência final, o filme incorpora explicitamente a inspiração dramatúrgica. Vestida com um figurino apropriado, e assumindo uma postura tipicamente teatral, Ginnny desfia um solilóquio shakespeariano no qual está presente, inclusive, a figura do Fantasma. Só que o Fantasma que a assombra não é o de um morto, como em Hamlet, mas o de Mickey, cujas revelações alimentam a sua culpa.
É comum dizer que um Woody Allen regular é melhor do que muitos filmes bons de outros diretores. “Roda Gigante”, que lembra “Match Point” pelo dilema ético, é um Woody Allen dos bons. Nele o autor deixa de lado a exposição das neuroses de determinados estratos sociais (sobretudo a classe média alta) e mergulha nas profundezas da alma humana – naquele sombrio recesso em que a luta com Ananke (o inexorável Destino) pode revelar a nossa grandeza ou a nossa abjeção.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

O silêncio do inocente