Eu fazia o segundo
ano ginasial. Meu colégio não era nenhum modelo de prática pedagógica, mas gozava
de prestígio na cidade. Estava longe de ser, como se costuma dizer de certas
escolas, “pagou, passou”. Também não impunha aos alunos grandes desafios;
estudando razoavelmente, a gente conseguia passar de ano até chegar ao temido
vestibular. Isso permitia que eu tivesse um razoável sucesso, pois as peladas e
os jogos de botão não me impediam de fazer os deveres e me preparar para as provas.
A turma deixava a
desejar quanto à disciplina. Falava-se muito, gritava-se vez por outra. Havia
dias em que os professores não conseguiam controlar a classe e tinham que
chamar o diretor. Ele vinha, dava uma “lição de moral”, prometia suspender ou
mesmo expulsar os rebeldes. Isso nos acalmava um pouco, mas não era suficiente
para nos manter concentrados. Bastava um espirro, uma tosse estridente (proposital!)
para que começassem os risos, que não raro evoluíam para a algazarra.
Quem nunca tinha esse
tipo de comportamento era Jurandir. Sua mãe enviuvara e vivia de faxinas. Como
a família não tinha condições de pagar a escola, ele recebera uma bolsa e
procurava corresponder com um comportamento exemplar. Evitava todo tipo de indisciplina
e era muito esforçado. Sabia que o bom comportamento e a aplicação eram essenciais
para que continuasse como aluno. Evitava, assim, deixar-se levar pelas más
disposições de espírito dos colegas, cujos pais podiam pagar não apenas a
escola como também o curso de língua estrangeira (além de outros pequenos luxos
da classe média).
Entre nossos
professores, havia um que era mais duro. Chamava-se Godofredo (quando ele disse
o nome, olhamo-nos com um ar de riso). Godofredo dava aula sentado, com a cabeça
baixa. Mandava-nos ler um trecho de Camões, ou de Machado de Assis, e pedia que
interpretássemos. Como quase ninguém dizia nada, ele não tinha papas na língua
para enfatizar a nossa estupidez. Éramos estúpidos porque não tínhamos interesse
em ler, conhecer a nossa literatura, dominar os recursos semânticos e sintáticos
para escrever bem...
Hoje entendo melhor Godofredo.
Ele tinha um amor verdadeiro pela língua e queria nos transmitir um pouco
disso. Queria que crescêssemos. O que lhe faltava era a habilidade para nos
sensibilizar. Preferia o confronto direto, a ilustração de nossas fragilidades.
Não suportava indisciplina, e quando a turma se mostrava rebelde ele ameaçava chamar
os pais para uma “conversa séria”.
O que houve numa de
suas aulas me marcou para sempre. Foi numa dessas ocasiões em que estava
difícil controlar a turma, que na aula anterior praticamente expulsara a
professora Gisleide, de História (uma candura de pessoa, mas sem força para
impor disciplina). Godofredo entrou na sala sério, sentou-se como fazia habitualmente
e abriu a gramática. Nesse momento a peteca irrompeu não sei de onde e passou
rente ao seu rosto. O giz não o atingiu diretamente, mas bateu no quadro e foi
parar em cima do birô. Ele pegou o pequeno petardo, examinou-o, e em seguida
olhou para a turma com ar colérico, como se fosse revidar.
-- Quem foi?
Silêncio. Godofredo ficou
nos encarando por cerca de meio minuto. Repetiu a pergunta:
-- Quem foi?! Quero saber
agora!
Como ninguém falasse,
ele aliviou o semblante e esboçou um sorriso:
-- Perguntei por
perguntar, pois sei quem jogou a peteca. Eu queria ver se o autor tinha a decência
de se revelar.
Depois de dizer isso,
apontou para um de nós e falou num tom que não admitia réplica:
-- “Seu” Jurandir,
saia da classe e vá até a diretoria. O senhor está suspenso.
Jurandir ficou branco e começou a tremer. Com voz sumida, tentou negar:
-- N...não f...fui
eu.
Sabíamos que não tinha
sido ele, mas Godofredo insistia. Repetiu alto, como se falasse para toda a
turma:
-- Foi, sim! Eu vi. Tenha
a dignidade de reconhecer e vá à diretoria.
Jurandir levantou-se,
encurvado, com lágrimas nos olhos. Olhamo-nos sem saber o que dizer. Como suportar
aquela enorme injustiça? Godofredo parecia convencido e não estava disposto a
voltar atrás. Se ao menos tivesse apontado outra pessoa...
Mas antes de o acusado transpor o umbral da porta, um dos alunos se levantou e disse de um jato:
-- Não foi ele,
professor. Fui eu.
Respiramos aliviados.
Não nos surpreendia que tivesse sido Claudionor. Ele era pouco estudioso e costumava
fazer baderna. Talvez até gostasse de passar um tempo em casa, vendo televisão
e lendo gibis.
Godofredo dirigiu-se
então a Jurandir, que havia parado quando ouvira o colega assumir a culpa:
-- Volte, “seu” Jurandir.
Sente-se no seu lugar.
Depois olhou para o
responsável pela brincadeira, que continuava em pé enquanto era alvo do olhar
da turma:
-- E você, “seu” Claudionor,
vá para a diretoria.
Voltou ao birô e
pediu que abríssemos o livro de textos. Tentávamos voltar ao normal. Notei que
ao longo da aula Jurandir permaneceu intranquilo. Parecia desconcentrado e tinha no rosto um resto de palidez. O que se passava pela sua cabeça? Pensava,
talvez, que teria sido vítima de uma injustiça caso o colega não assumisse a
culpa. Quanto a mim, jamais tive dúvida;
Godofredo sabia muito bem que não tinha sido ele quem jogara a peteca.
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Blog de Chico Viana
https://chviana.blogspot.com/2018/10/a-peteca.html
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