terça-feira, 18 de outubro de 2022

Votos em família

 Dona Ilca chama a família para o almoço com uma ponta de receio. Já não sabe o que fazer para impedir que os filhos entrem no clima de beligerância que vem marcando o atual momento político. Logo ela, que sempre se orgulhou de manter tudo na casa sob controle.

Quando os filhos estão à mesa, Nicanor – o mais velho – pergunta o que vão comer.   

– Lula! – intromete-se Olavo.

– Eu pensei que fosse índio... – alfineta o outro.     

–  Olhe aí, mãe! Nicanor me provocou.  

– Você provocou primeiro! Pensa que eu não entendi a sua referência a lula?

– Nada a ver. Mamãe às vezes cozinha molusco.

– Calma vocês dois! – interrompe Dona Ilca. – Vão brigar de novo durante a refeição?  

Os filhos se acusam ao mesmo tempo:

– Foi ele quem começou!!

– Por que vocês não se comportam como Nailde?    

Refere-se à única filha, que observa indiferente a pendenga entre os irmãos.

– Por sinal, mãe, Nailde tem estado muito calada – observa Olavo com um tom malicioso.    

– Pois é – confirma o outro.

Tal concordância parece que vai instaurar uma trégua entre os dois. Mas é impressão. Logo que chega o prato do dia, Nicanor exclama estalando a língua:      

         – Carne vermelha no molho de tomate! Que também é vermelho.      

O comentário irrita Olavo:

– Por que está insistindo em falar essa cor? Quer me provocar de novo?

– Também, você vê provocação em tudo! Vê se desarma esse espírito, mano. O Brasil precisa de paz.

 – Conheço esse papo. Quer dizer que o meu candidato não é da paz!

Os dois se encaram, furiosos. Dona Ilca percebe que estão longe de chegar a uma trégua, e decreta:   

– Os dois já para o quarto! Hoje ficam sem almoço. 

– O quê?!   

A dona da casa é dura e não está disposta a ceder.

Enquanto se levantam, Nicanor aproveita para dar mais uma alfinetada:  

– É até bom. Só assim Olavo sente o que é estar com fome, situação de muitos brasileiros hoje...

Interrompe o discurso quando vê o irmão apontar para ele o indicador com o polegar levantado.  

Depois que deixam a copa, Dona Ilca se volta para Nailde. A garota continua calada e um pouco triste.   

– Que é que há com você? 

– Me sinto órfã.   

– Orfã?! De quem?

– Do Ciro. Foi ele quem teve menos votos entre os quatro finalistas. E desta vez não haverá Paris...

Dona Ilca suspira, pensativa. “Essa pelo menos é romântica e não ofende ninguém.” Depois trata de providenciar o prato do marido, que nos últimos dias vem fazendo as refeições no quarto do casal. Godofredo tem pressão alta e decidiu que só voltará a comer com a família depois das eleições.

domingo, 16 de outubro de 2022

Dia do Pão


             Hoje é o Dia do Pão. Louvemos esse alimento essencial, que se tornou símbolo de todos os outros; a preocupação básica do ser humano é garantir “o pão” de cada dia.
           Sou um panófilo assumido. Para mim, no café e no jantar pode faltar tudo, menos pão. Com uma fatia de queijo, ele nutre e se constitui numa festa para o paladar. Vale por um bife, com a vantagem de não ter as toxinas da carne.
           Nem só de pão vive o homem, mas com ele a vida fica melhor. Tanto para o corpo, quanto para a alma. Não à toa, as meninas o escolheram para figurar um rapaz bonito (de mim, nunca nenhuma disse que sou um pão!).
           É um dos poucos alimentos que tem um significado, como demonstra o seu papel na liturgia cristã Que outro mereceu representar a corpo do Salvador?
           Há vários tipos de pão, e hoje a oferta é bastante diversificada. Mas prefiro o clássico e frugal pão francês. Confesso que há nisso  um quê de nostálgico; ele me lembra o tempo em que eu, menino, ficava encarregado de ir buscá-lo na mercearia. Escolhia os mais tostadinhos para depois me fartar em casa depois de encharcá-los de manteiga (na infância não há colesterol).
           Como tudo tem dois lados, há também o pão que o Diabo amassou. Nunca entendi o que o Tinhoso foi fazer nos fornos de uma padaria, mas já se disse que ele está sempre à espreita e entra onde aparece alguma brecha. Desse pão felizmente provei pouco, e agora, com a idade, aprendo cada vez mais a evitá-lo. 
           Mas não deixemos que lembranças desagradáveis ensombrem um texto comemorativo. E viva o pão no seu dia! Ele não pode faltar na mesa, mas se isso ocorrer não se aperreie; leve numa broa.

sábado, 15 de outubro de 2022

Divagando se vai longe (20)

As pessoas costumam curtir postagens em que os autores se dizem sofredores e insatisfeitos com suas vidas; parece que isso capta melhor a atenção do que se confessar satisfeito e feliz. Não é difícil entender o motivo. O ser humano tende a se identificar com quem relata as próprias desventuras, que são também as dele. É pela identificação que ocorre a catarse, o alívio, que não acontece quando nos deparamos com o relato de vidas “perfeitas” e, por isso, tão diferentes da nossa. 

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A crença religiosa não existe para que o indivíduo se salve em outro mundo, mas para que se salve neste. É com base nisso que a fé dispensa comprovação. O indivíduo acredita porque necessita acreditar, e não porque alguma evidência objetiva fundamente a sua crença. 

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A evolução é um sentido inteligível dado ao impulso de sobreviver. Evoluímos moldando-nos ao que o nosso engenho produz, e um pouco por força dele. Não há outra forma de ir em frente e não há como voltar atrás. 

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É errôneo dizer que alguém só acredita no que vê. O que vê a gente constata. A crença só pode existir no que se supõe ou imagina, não no que se vê. As crenças se fundamentam mais em nossos desejos do que em evidências da realidade. 

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Quem considera apenas seu deus verdadeiro está negando a verdade do deus dos outros. Consequentemente, nega a própria ideia de Deus, que se define como uno e absoluto. As religiões, nesse sentido, são o que há de menos divino na fé. Derivam de circunstâncias, temperamentos, acidentes históricos, e refletem o empenho do homem em prevalecer sobre os outros homens. O sentimento de comunhão com a Divindade pode perfeitamente existir fora das igrejas.  


segunda-feira, 10 de outubro de 2022

"Palavra por palavra"


        O que não falta são livros que buscam ensinar a escrever. Não ensinam. Os melhores dão algumas boas dicas e têm a honestidade de mandar o leitor fechá-los e praticar. Assim como samba não se aprende na escola, a escrita não se aprende em guias de redação. Isso não quer dizer que não sejam úteis. Uma das vantagens deles é trazer depoimentos de escritores e mostrar como os problemas de quem se propõe a escrever são comuns a todos, o que serve de estímulo aos iniciantes.   

        Li alguns desses livros e confesso que poucos me impressionaram tanto como “Palavra por palavra”, de Anne Lamott (Sextante). Adquiri-o meio por acaso, numa pequena livraria do aeroporto de Guarulhos antes de um voo para João Pessoa. Eu estava na sala de espera quando percebi que terminaria “O espião que saiu do frio” antes do fim da viagem. Não teria mais com que distrair minha fobia de voar. Explico: quando viajo de avião, a leitura é meu Rivotril (outros diriam “meu Lexotan”, ou “meu terço”); absorvo-me nela da decolagem ao pouso.   

       Vendo que não teria o que ler, corri ao quiosque mais próximo (já se fazia fila no portão de embarque) e comprei o primeiro livro com que me deparei. Era o de Anne Lamott.  A obra me conquistou desde a introdução sincera e divertida, em que ela mistura lembranças da infância com impressões de suas primeiras leituras. Destaca a influência que recebeu do pai, também escritor e morto precocemente de câncer. Refere a sua ligação com outros escritores e o desejo de, por meio da literatura, transcender os limites do ambiente provinciano em que foi criada.

        A obra tem como subtítulo ”Instruções sobre escrever e viver”. Nada mais exato, pois a autora aborda sobretudo a dimensão existencial da escrita. Questiona o sentido e o valor que ela tem, buscando destruir mitos como o de que a publicação é a grande meta do escritor e pode lhe trazer dinheiro e glória. “Se o que você tem em mente é fama e fortuna, já vou avisando que a publicação o levará à loucura”, adverte. Mais importante do que publicar é fazer da escrita fonte de autoconhecimento e um meio de investigar (e revelar aos outros) nossa humanidade. “O objetivo da maior parte dos bons textos parece ser revelar, sob uma luz ética, quem somos”.

         Para Lamott o escritor tem que dizer a verdade, deixar emergir o inconsciente, a emoção, e se comprometer moralmente com aquilo em que acredita. Isso não quer dizer que ele deva “edificar” os leitores. “Uma posição moral não é uma mensagem, e sim uma preocupação passional dentro de você”, explica. O móvel dessa paixão é o desejo de aclarar as zonas sombrias que existem dentro de nós. “Quando as pessoas iluminam um pouco o próprio monstro, descobrem como ele se parece com o dos outros”; cabe ao escritor revelar esses desvãos que nos amedrontam e angustiam. O fato de saber que eles são comuns a todos nos traz algum alívio.

         “Palavra por palavra” é um desses livros indispensáveis para os que pretendem escrever. Encoraja a que se persista nesse propósito com intensidade e doação -- “por causa do espírito”. “A escrita e a leitura reduzem nossa sensação de isolamento. Aprofundam, alargam e expandem nossa noção da vida: alimentam a alma”, resume a autora.

O silêncio do inocente