domingo, 22 de dezembro de 2024

Fidelidade latina

            A série “Cem anos de solidão”, que estreou recentemente na Netflix, faz jus à obra-prima que lhe deu origem. Reproduz com primor os eventos, a atmosfera e os conflitos presentes no romance, que transcende do realismo para captar a experiência e o imaginário de uma família latino-americana e sua descendência.   

Jose Arcádio Buendía, o patriarca da prole, é um visionário que pretende descobrir por meio de confusos experimentos alquímicos os segredos e as leis da Natureza. Influenciado pelo cigano Melquíades, perde noites buscando entender o enigma da vida e da morte. Enquanto isso, os membros da família se dispersam dentro e fora de casa, dando curso aos instintos sexuais (alguns incestuosos), ao enseio utópico de outras terras ou à obsessão revolucionária. De um modo ou de outro, a violência permeia esses comportamentos.  

Chama a atenção na série o trabalho dos atores, de uma impressionante homogeneidade – com destaque para as atrizes que interpretam a personagem Úrsula. Delas emana uma fortaleza e uma convicção condizentes com o papel de esteio da família. São paradigmas da mulher que se impõe pelo discernimento e a sensatez num cenário de homens tíbios ou tresloucados.

Outro mérito está na direção, que orienta a câmera pelos desvãos da casa como se quisesse ressaltar que ali é um micromundo e, obviamente, espelha um cenário bem maior. Concorre para a beleza plástica do filme a alternância entre esses movimentos e a fixação da câmera em quadros cuja cenografia é rica de significados. É como se a direção pretendesse que o espectador neles se detivesse para melhor captar a inter-relação entre o ambiente e a psicologia dos personagens. Os quadros valem por si.

A opressão do poder político, com as suas tramoias e o uso truculento da força, enseja a tragédia que ocorre no final. Encoraja tanto a luta armada (de que é exemplo máximo o comportamento de Aureliano), quanto as alienadas elucubrações do velho patriarca, que enlouquece por não conseguir encontrar um sentido para a vida. Amarrado ao tronco que genealogicamente simboliza, ele sonha reencontrar Melquíades nas águas lustrais de um lago onde o outro, ironicamente, veio a se afogar. 

sexta-feira, 6 de dezembro de 2024

Um poeta além da vanguarda


            Foi-se Gilberto Mendonça Teles, crítico literário, professor e poeta. No âmbito dos estudos literários, escreveu o elogiado “Vanguarda europeia e Modernismo brasileiro”, no qual reproduz e comenta os manifestos de vanguarda que influenciaram alguns dos nossos autores modernistas. 

Para ele nem toda vanguarda é boa, ou seja, nem toda ela enriquece com novas técnicas e formas a poesia. Daí o apelo um tanto jocoso que faz no poema "Prece", publicado em “Arte de armar”: “Ah! Meu anjo bom,/ meu anjo da guarda,/ livrai-me do mal.../ dos maus da vanguarda."

Sua produção poética é marcada por uma aguda consciência artesanal e pela valorização da metalinguagem, que corresponde a uma crise e, ao mesmo tempo, a um revigoramento da poesia. 

Cheguei a ouvir dele: “Em vez de tematizar velhos universais como o amor, a Natureza, a saudade, os poetas passaram a se debruçar sobre o próprio fazer poético”. Isso explicava a sua admiração pela poesia de Drummond, entre outros modernos, sobre cujas repetições estilísticas escreveu um estudo que se tornou clássico.

O autor de “José”, a propósito, foi um dos presentes ao almoço comemorativo dos seus 50 anos, ocorrido na Churrascaria Porcão, no Rio. A foto é um flagrante dessa comemoração; nela aparecemos eu e Denise com Gilberto (à esquerda) e com o amigo e escritor Virgílio Moretzsohn Moreira, também falecido. 

          Um dos títulos mais importantes de Gilberto é “Saciologia goiana”, em que utiliza o mito do Saci para discutir erotismo, realidade político-social e intertextualidade no quadro da tradição literária. Consciente do próprio valor, não se importava com ser reconhecido “agora”. Confiava no juízo do tempo, que é sempre o senhor da última palavra.

Fidelidade latina