quinta-feira, 26 de dezembro de 2024

O galo e o peru (uma antifábula natalina)

        


            Véspera de Natal. No quintal de uma família de classe média, estão um galo e um peru. O galo caminha alegre, balançando a crista. Já o peru não sai do canto e mal disfarça a tristeza. Sabe o que o aguarda.

De repente o galo canta. O peru então o interroga com um misto de surpresa e ressentimento:

-- Por que essa alegria?

-- Porque tenho alguma coisa a ver com o que acontece hoje. Um de meus ascendentes saudou o nascimento do Menino. Foi a trombeta auroreal de um novo mundo. Como eu não iria me alegrar?...   E você? Qual a razão dessa cara?

-- Ora... Daqui a pouco vou virar comida para os que vêm festejar o nascimento a que você se refere. Queria que eu estivesse contente?

-- Procure aceitar. Trata-se de uma grande causa. Além do mais, você terá tudo para ser o rei da festa. Muitos o acharão macio, crocante, bem temperado.

-- Isso não vai depender de mim, mas da cozinheira. Esqueceu que estarei morto?

-- Estará sem vida, mas será o centro das atenções. E o mais importante: representará ali a grande nota de realidade. Mais do que a árvore, as músicas, os cumprimentos formais, dará testemunho da natureza do homem.  O sucesso dessa noite vai se medir pelo prazer que der aos convivas.     

-- Tem certeza?

 -- Claro! Você vai saciar-lhes o apetite do corpo, que é mais profundo do que o da alma. Se vir as coisas por esse lado, se convencerá da sua importância.

O Peru parece impressionado com essas palavras. O galo volta a se distanciar, balançando a crista, e canta de novo sem motivo. Ou, quem sabe, devido à alegria de não ser peru. Quando volta de mais um passeio, ouve novo desabafo:

-- Sua retórica não me convence. É fácil elogiar um condenado à morte quando se vai permanecer vivo.  Aposto que está contente por não ocupar o meu lugar.       

-- Não nego... Mas você sabe que meu dia vai chegar. E não terá o mesmo brilho do seu. Vou “reinar” num desses banais almoços de domingo, com música estridente ao fundo e cerveja em vez de champanhe.

Nesse momento a cozinheira vem interromper a conversa dos dois. Tem na mão uma peixeira brilhante. Com o ar decidido, dirige-se ao peru.

A ave não esboça nenhuma reação. Quando é alçada e apertada de encontro à barriga da mulher, ouve ainda o galo cantar. Pela terceira vez.

Sinal dos tempos

           

Ele pensou em dar à família um Natal diferente. Estava cansado de ver todo ano a mesma coisa: a parentada em volta da árvore, comendo e bebendo, depois a entrega dos presentes, e por fim a ceia. Sentia que, a despeito de a festa existir para renovar os espíritos, era preciso mudar um pouco o ritual.   

Mas como fazer para inovar num acontecimento que se alimentava da tradição? A mulher havia anos armava a mesma árvore. Estava (a árvore, não a mulher) tão velhinha, que toda a iluminação já fora trocada. Ele sentia um confortável prazer em ver a esposa retirar do armário os objetos conhecidos e recolocá-los quase no mesmo lugar. Um ano era muito tempo, o que sempre o fazia se surpreender com detalhes que não observara em anos anteriores. A roupa do anjo Gabriel, por exemplo. Ou a barba de um dos reis magos.

      Então lhe ocorreu a ideia: contratar um Papai Noel para vir, em pessoa, entregar os presentes. A família era pequena; dava para acomodar num saco os mimos que compraria para a esposa, os três filhos, os sogros e as duas cunhadas.  

Ficou imaginando o efeito: meia-noite, ele reunido com a família na sala, e todos estranhando nesse ano não haver presentes. A sogra desapontada, pois esperava um novo modelo de toalha de mesa. O sogro, chateado, porque precisava de cuecas e deixara de comprá-las justamente porque o Natal estava chegando. De repente, alguém bateria na porta. A filha mais nova iria ver quem era e voltaria gritando, afogueada:

–  Mãe, é Papai Noel!

– O quê?!

Bolado o plano, tratou de o pôr em prática. Não foi difícil contratar alguém. Nessa época muitos indivíduos com o chamado “físico do papel” dão seus nomes a agências de emprego, que são procuradas sobretudo pelos shoppings. Ele foi a uma delas. Depois de ver fotos e fazer uma entrevista com o escolhido, contratou o serviço.  

Comprou os presentes e, na véspera do grande dia, deixou-os com o homem. Era um senhor grisalho, bonachão, conforme convinha à personagem. Até ria parecido com o ícone natalino, sem precisar forçar muito o “Rô Rô”. Chamava-se Leopoldo e tinha um Fiat velho, mas em bom estado, no qual levaria os pacotes.

Enfim, noite de Natal. Para diminuir a perplexidade dos parentes, que não compreendiam a ausência dos presentes em volta da árvore, ele disse que mais tarde haveria uma surpresa. Gerou-se uma tensa mas alegre expectativa, que só foi quebrada quando um carro parou quase em frente à casa.  

Após uns dois minutos, ouviram-se gritos de “Pega! Pega ladrão!”. Ele correu até a calçada e viu Leopoldo, desesperado, apontando para dois rapazes que dobravam a esquina levando o saco no qual estavam os presentes; balançava a cabeça e repetia, como que se desculpando:

 – Vieram de surpresa! Não pude fazer nada...

        Tratou de tranquilizar o pobre homem e o conduziu ao interior da casa.

– Este é Leopoldo – apresentou, explicando em seguida o que planejara.

Houve algum desapontamento, mas todos acabaram compreendendo. Nesse ano não teriam presentes, mas ali estava Papai Noel! Se o despojaram da carga preciosa, qual o remédio? Ninguém hoje tem segurança ao andar nas ruas, ainda mais à noite... O importante era não perder o espírito natalino.

E com isso em mente riram, deram um abraço no Bom Velhinho e o convidaram para a ceia.

domingo, 22 de dezembro de 2024

Fidelidade latina

            A série “Cem anos de solidão”, que estreou recentemente na Netflix, faz jus à obra-prima que lhe deu origem. Reproduz com primor os eventos, a atmosfera e os conflitos presentes no romance, que transcende do realismo para captar a experiência e o imaginário de uma família latino-americana e sua descendência.   

Jose Arcádio Buendía, o patriarca da prole, é um visionário que pretende descobrir por meio de confusos experimentos alquímicos os segredos e as leis da Natureza. Influenciado pelo cigano Melquíades, perde noites buscando entender o enigma da vida e da morte. Enquanto isso, os membros da família se dispersam dentro e fora de casa, dando curso aos instintos sexuais (alguns incestuosos), ao enseio utópico de outras terras ou à obsessão revolucionária. De um modo ou de outro, a violência permeia esses comportamentos.  

Chama a atenção na série o trabalho dos atores, de uma impressionante homogeneidade – com destaque para as atrizes que interpretam a personagem Úrsula. Delas emana uma fortaleza e uma convicção condizentes com o papel de esteio da família. São paradigmas da mulher que se impõe pelo discernimento e a sensatez num cenário de homens tíbios ou tresloucados.

Outro mérito está na direção, que orienta a câmera pelos desvãos da casa como se quisesse ressaltar que ali é um micromundo e, obviamente, espelha um cenário bem maior. Concorre para a beleza plástica do filme a alternância entre esses movimentos e a fixação da câmera em quadros cuja cenografia é rica de significados. É como se a direção pretendesse que o espectador neles se detivesse para melhor captar a inter-relação entre o ambiente e a psicologia dos personagens. Os quadros valem por si.

A opressão do poder político, com as suas tramoias e o uso truculento da força, enseja a tragédia que ocorre no final. Encoraja tanto a luta armada (de que é exemplo máximo o comportamento de Aureliano), quanto as alienadas elucubrações do velho patriarca, que enlouquece por não conseguir encontrar um sentido para a vida. Amarrado ao tronco que genealogicamente simboliza, ele sonha reencontrar Melquíades nas águas lustrais de um lago onde o outro, ironicamente, veio a se afogar. 

sexta-feira, 6 de dezembro de 2024

Um poeta além da vanguarda


            Foi-se Gilberto Mendonça Teles, crítico literário, professor e poeta. No âmbito dos estudos literários, escreveu o elogiado “Vanguarda europeia e Modernismo brasileiro”, no qual reproduz e comenta os manifestos de vanguarda que influenciaram alguns dos nossos autores modernistas. 

Para ele nem toda vanguarda é boa, ou seja, nem toda ela enriquece com novas técnicas e formas a poesia. Daí o apelo um tanto jocoso que faz no poema "Prece", publicado em “Arte de armar”: “Ah! Meu anjo bom,/ meu anjo da guarda,/ livrai-me do mal.../ dos maus da vanguarda."

Sua produção poética é marcada por uma aguda consciência artesanal e pela valorização da metalinguagem, que corresponde a uma crise e, ao mesmo tempo, a um revigoramento da poesia. 

Cheguei a ouvir dele: “Em vez de tematizar velhos universais como o amor, a Natureza, a saudade, os poetas passaram a se debruçar sobre o próprio fazer poético”. Isso explicava a sua admiração pela poesia de Drummond, entre outros modernos, sobre cujas repetições estilísticas escreveu um estudo que se tornou clássico.

O autor de “José”, a propósito, foi um dos presentes ao almoço comemorativo dos seus 50 anos, ocorrido na Churrascaria Porcão, no Rio. A foto é um flagrante dessa comemoração; nela aparecemos eu e Denise com Gilberto (à esquerda) e com o amigo e escritor Virgílio Moretzsohn Moreira, também falecido. 

          Um dos títulos mais importantes de Gilberto é “Saciologia goiana”, em que utiliza o mito do Saci para discutir erotismo, realidade político-social e intertextualidade no quadro da tradição literária. Consciente do próprio valor, não se importava com ser reconhecido “agora”. Confiava no juízo do tempo, que é sempre o senhor da última palavra.

Um nome de mulher