domingo, 9 de fevereiro de 2025

História arcaica

           Essa história aconteceu no tempo do ronca, quando o recato das moçoilas era-lhes o maior trunfo para os casórios. Quanto mais pudibundas, mais candidatas à celebração nupcial. Daí que se esmeravam em ostentar um ilibado comportamento em sociedade; quando iam às tertúlias, era na companhia das genitoras ou de alguém a quem incumbia vigiá-las.      

Conta-se que um mancebo sem eira nem beira intentava namorar uma dessas donzelas de truz. Para isso usava toda a sua léria, mas o pai da moça se opunha por achar que ele era um mandrião. Não se ocupava em nada que lhe trouxesse algum tipo de estipêndio.  O moço pretendia convolar de estado civil – mas como, se mais parecia um mequetrefe?

O pai então lançou-lhe um repto: ele casaria com a sua filha se jungisse a tal desiderato a demonstração de que não era um soez.

– E o que devo fazer? – quis saber o rapaz. 

– Deves dar-me a prova de que tens futuro. 

Em meio a tão escorchante desafio, o moço foi aos poucos sentindo gorarem-se-lhe as pretensões. Não era nenhum abilolado e percebeu que o queriam apartar da contenda.  Caminhou a esmo na noite até que, esfalfado, resolveu tomar um pifão. Quando a ebriedade lhe turvou o bestunto, dirigiu-se à casa da moça.   

         Postado em frente à alcova onde ela dormia, encetou uma elocução:

– Não tenho prebenda, mas não sou nenhum sorrelfa. Juntos viveríamos com parcimônia, mas não à míngua. Juro-to.

A moça, já adormecida, despertou num sobressalto. Colocou furibunda o corselete, que preferia ao califom, e foi até a janela:

          – Arreda-te, doidivanas. Não vês que nada ganhas com tais ululações? Além disso, tiraste-me dos braços de Morfeu.

          – Morfeu?! Então tens outro... Por que não me falaste? – gorgolejou o rapaz, já pensando em cascar a marreta. Mas logo tirou da cabeça essa ideia, pois no fundo era um poltrão.   

– Se não sabes quem é Morfeu, com isso apenas provas a tua estultice. E dás razão a meu pai... – continuou a moça. Dito isso, fechou com estrépito a janela.

         O rapaz foi embora achando-se um alarve. Ainda pensou em ir até uma botica comprar um sanativo que lhe diminuísse a coita. Ao mesmo tempo, contudo, sentia-se ditoso por haver descoberto a traição. Melhor saber-se guampudo agora do que depois.

 


sábado, 1 de fevereiro de 2025

Pouco substancioso


 “A substância” pretende fazer uma crítica à obsessão que muitas mulheres têm com a beleza e a preservação da juventude. 

Conta a história de Elisabeth Sparkle, uma ex-atriz que vira apresentadora de ginástica e, ao perceber o seu declínio físico, aceita se submeter a uma experiência radical: administrar uma droga que a transformaria numa versão bem mais nova de si mesma. 

O experimento funciona, mas de uma forma surpreendente. Em vez de melhorar o seu aspecto, promove na mulher uma espécie de heterofetação; faz sair do seu corpo uma “outra”, com a qual ela passa a alternar a própria existência. 

Em vez de se deter no autoquestionamento sobre a velhice, discutindo os motivos da não aceitação e as implicações existenciais dessa recusa, o filme passa a expor o conflito que se instala entre as duas. 

Uma quer se sobrepor à outra, numa disputa tipo Dr. Jekyll e Mr. Hyde, e nesse confronto a velha atriz começa a se deformar fisicamente. Adquire aos poucos um aspecto monstruoso, que lhe impede os mínimos movimentos e a transforma num estorvo para si mesma. 

Parece estar nessa hipérbole a “mensagem” a ser transmitida pelo roteiro, já que são cada vez mais frequentes na mídia os “monstrinhos” que têm os rostos desfigurados por procedimentos como harmonização facial e outros do gênero. 

O horror físico aparece como o preço pago pela insatisfação que a personagem tinha consigo. A ênfase nessa transformação, contudo, ao mesmo tempo que constitui a nota original do filme, tira-lhe um pouco da verossimilhança. 

Embora envolva um tema sério como a passagem do tempo e os seus efeitos, A substância” se oferece mais à vista do que à reflexão. Impacta mais pelo que mostra do que pelo que suscita ante o melancólico reconhecimento, por parte de Elisabeth, de que está ficando velha. 

Merece destaque o trabalho das atrizes que encarnam os dois momentos da personagem — sobretudo o de Demi Moore, como Elisabeth. À medida que vai sendo preterida (e derrotada) por Sue (brilhantemente interpretada por Margaret Qualley), ela deixa transparecer um rancor e um desespero cuja intensidade se justifica pelo reconhecimento de que têm como alvo ela mesma. Afinal, como o roteiro faz questão de frisar, uma é a outra. 

História arcaica