Era impossível saber o que naquela noite se passava na cabeça de Salomé. Dizem que
ela dançou melhor do que nunca,
retardando os gestos voluptuosos e
coleando como a serpente
do Paraíso, a fim de comover
o rei. Este,
numa das vezes em
que ela
se curvou para beijá-lo – um
aperitivo para
o que viria depois
–, reteve-a pelas espáduas e teria
sussurrado: “Teu corpo
é um monumento
à luxúria. Um
monumento que
se move...”. Tais palavras
penetraram as entranhas da dançarina como um vinho
inebriante e tentador. Consciente da própria
beleza, ciente
do seu poder,
Salomé bailou tresloucada pelos jardins
do palácio. Queria impressionar
o rei e pedir-lhe uma coisa.
“O quê, Salomé?”
– Depois...
Mais tarde.
E sorria, enigmática, saracoteando os quadris
em espasmos
de fogo. Às vezes
invertia os movimentos, empinando o ventre em
ritmadas simulações do ato sexual. O rei, já pela quarta ou quinta taça,
enlouquecia sob o real manto
e até deixara cair
a coroa, que
jazia emborcada sobre uma alcatifa. Era um rei provisoriamente destronado,
um rei
descomposto pelo desejo
e que não
via a hora de
evacuar a sala
– mandar todos
embora, inclusive
a rainha, sua
mulher – e fazer
daquele recinto, alcova.
Salomé, no entanto, estava triste. Dizem as testemunhas
daquela noite especial
que, apesar
do furor com
que dançava, percebia-se em seus olhos uma tristeza profunda. Outros,
observando-a com mais
atenção, notaram que
à melancolia do olhar
mesclava-se um brilho
aterrorizante e maligno. Todo aquele frisson corporal
era uma tortura,
uma espécie de exorcismo.
Salomé em verdade
não dançava para
encantar o rei,
pois esse ela
já tinha
conquistado; com o manto revolto
e a coroa caída,
o monarca era
uma imagem de rendição.
Dançava era para
esquecer que,
assim tão
bela e desejável, fora
recusada por João Batista.
Quem era
João, aquele rústico
e insano que
comia gafanhotos, vestia-se de peles e dizia palavras
sem nexo,
falando de um reino
onde pouco
valiam os atributos do corpo – quem era ele para menosprezar uma beleza pela qual suspiravam os ricos,
os nobres, os reis?
Quem era
ele para
desprezá-la?
Quanto mais
pensava nisso, mais e melhor Salomé dançava. Nunca
se vira tanto
vigor em seus gestos, tanta compassada violência
em seus
requebros de serpente
irada. Poucos percebiam que a música era o seu açoite, o chicote em que se
debatia o seu amor-próprio.
Apenas algumas mulheres
entenderam aquela coreografia do narcisismo ferido. Apenas
as mais belas, intimamente satisfeitas
de ver a outra
sofrer.
Em dado momento Salomé parou, como
que saturada
do próprio delírio.
Foi até o rei
– que emborcava mais
uma taça de vinho
– e sussurrou-lhe com a língua untuosa
alguma coisa ao ouvido.
Sua Majestade
jogou fora o copo
e se levantou de um jato,
repentinamente sóbrio:
“A cabeça?! Mas
como, a cabeça?!”
– Aqui
e já, numa bandeja.
Como uma prova
de que Vossa
Majestade me
ama e me
quer.
O rei
chamou a guarda e ordenou que imediatamente
se cumprisse o desejo de Salomé. Que localizassem João e, sem
lhe dar tempo de dizer palavra – pois falando ele era perigoso e sedutor,
se bem que em outro sentido –, cortassem-lhe a cabeça
e a levassem até ali.
Fez-se
rápido a vontade
real. Alguns
minutos depois,
como se fosse parte
de um menu
imprevisto e grotesco,
a cabeça de João era
servida à atônita curiosidade
dos presentes. “O que
foi que ele
fez?” – perguntavam. “Foi ela quem pediu!” – respondiam, apontando para
Salomé.
Dizem que
a dançarina ainda
não ficara satisfeita.
Quis coroar sua
vingança com um gesto retumbante, apoteótico. Então
pediu que colocassem a cabeça de João Batista
numa mesa e começou, com gestos lentos e excitantes,
a dançar diante
dela. Durante meses, anos, ele a
repelira, fugira aos seus encantos. Ela
queria ver agora...
E contorcia-se diante do seu escalpo,
daquele troféu ao seu
orgulho ferido, com
uma triunfante volúpia.
Mas aos poucos
foi parando, parando, no rosto uma expressão de contrariedade
que se ia transformando em medo, e logo em horror.
Aos gritos,
chamou os guardas. E mandou levar a bandeja, a cabeça de cabelos
revoltos e sujos
de sangue. Não
suportara a castidade que
insistia em brilhar,
como dois lagos azuis de inocência,
nos olhos
vidrados do morto.