sábado, 30 de agosto de 2025

A magia de um humor fino

          

           Ele era um gênio da língua, comparável a Guimarães Rosa, Nelson Rodrigues ou Machado de Assis. Constituía com Millôr Fernandes uma dupla em que o humor se associa à crítica de costumes e à reflexão filosófica. Ambos tinham como matéria-prima o homem e sua presunção de superioridade. 

Como “gigolô das palavras”, Veríssimo fazia delas o que queria — mas, ao contrário desse personagem na vida real, deixava-as satisfeitas. E até orgulhosas, pois sabia “vê-las” em sua corporeidade, suas ressonâncias semânticas, seu poder de reinventar a realidade para dela nos afastar e nos fazer melhor percebê-la. 

Em suas histórias curtas, ele espelhava a perplexidade e por vezes o ridículo em que se debate a classe média com as suas dúvidas sobre a sexualidade, a psicanálise, a existência de Deus. Criticava os modismos em que muitos embarcam no ingênuo afã de dar sentido ao que não conseguem compreender.

Tal como o “irmão” Millôr, era um anarquista e um cético quanto aos discursos falsamente piedosos que engodam quem prefere, à lúcida reflexão, o conforto das ilusões. A diferença é que no carioca refulgia sobretudo a inteligência — e nele, Veríssimo, refulgia o espírito.

Ou seria melhor dizer a espirituosidade do estilista que sabia, como poucos, ressaltar o que há de poético nos textos de humor. Não me refiro ao poético sentimental, lírico, mas à característica da poesia como desaumatização do sentido convencional das palavras. Veríssimo as redescobre com a mesma perícia com a qual desvela alguns dos obscuros e risíveis anseios da nossa alma.

sexta-feira, 29 de agosto de 2025

O santo e a odalisca


     
      Era impossível saber o que naquela noite se passava na cabeça de Salomé. Dizem que ela dançou melhor do que nunca, retardando os gestos voluptuosos e coleando como a serpente do Paraíso, a fim de comover o rei. Este, numa das vezes em que ela se curvou para beijá-lo – um aperitivo para o que viria depois –, reteve-a pelas espáduas e teria sussurrado: “Teu corpo é um monumento à luxúria. Um monumento que se move...”. Tais palavras penetraram as entranhas da dançarina como um vinho inebriante e tentador. Consciente da própria beleza, ciente do seu poder, Salomé bailou tresloucada pelos jardins do palácio. Queria impressionar o rei e pedir-lhe uma coisa. “O quê, Salomé?”

Depois... Mais tarde.

E sorria, enigmática, saracoteando os quadris em espasmos de fogo. Às vezes invertia os movimentos, empinando o ventre em ritmadas simulações do ato sexual. O rei, pela quarta ou quinta taça, enlouquecia sob o real  manto e até deixara cair a coroa, que jazia emborcada sobre uma alcatifa. Era um rei provisoriamente destronado, um rei descomposto pelo desejo e que não via a hora de evacuar a salamandar todos embora, inclusive a rainha, sua mulher – e fazer daquele recinto, alcova.

Salomé, no entanto, estava triste. Dizem as testemunhas daquela noite especial que, apesar do furor com que dançava, percebia-se em seus olhos uma tristeza profunda. Outros, observando-a com mais atenção, notaram que à melancolia do olhar mesclava-se um brilho aterrorizante e maligno. Todo aquele frisson corporal era uma tortura, uma espécie de exorcismo. Salomé em verdade não dançava para encantar o rei, pois esse ela tinha conquistado; com o manto revolto e a coroa caída, o monarca era uma imagem de rendição. Dançava era para esquecer que, assim tão bela e desejável, fora recusada por João Batista. Quem era João, aquele rústico e insano que comia gafanhotos, vestia-se de peles e dizia palavras sem nexo, falando de um reino onde pouco valiam os atributos do corpoquem era ele para menosprezar uma beleza pela qual suspiravam os ricos, os nobres, os reis? Quem era ele para desprezá-la?

Quanto mais pensava nisso, mais e melhor Salomé dançava. Nunca se vira tanto vigor em seus gestos, tanta compassada violência em seus requebros de serpente irada. Poucos percebiam que a música era o seu açoite, o chicote em que se debatia o seu amor-próprio. Apenas algumas mulheres entenderam aquela coreografia do narcisismo ferido. Apenas as mais belas, intimamente satisfeitas de ver a outra sofrer.   

Em dado momento Salomé parou, como que saturada do próprio delírio. Foi até o reique emborcava mais uma taça de vinho – e sussurrou-lhe com a língua untuosa alguma coisa ao ouvido. Sua Majestade jogou fora o copo e se levantou de um jato, repentinamente sóbrio: “A cabeça?! Mas como, a cabeça?!”

         – Aqui e , numa bandeja. Como uma prova de que Vossa Majestade me ama e me quer

O rei chamou a guarda e ordenou que imediatamente se cumprisse o desejo de Salomé. Que localizassem João e, sem lhe dar tempo de dizer palavrapois falando ele era perigoso e sedutor, se bem que em outro sentido –, cortassem-lhe a cabeça e a levassem até ali.   

 Fez-se rápido a vontade real. Alguns minutos depois, como se fosse parte de um menu imprevisto e grotesco, a cabeça de João era servida à atônita curiosidade dos presentes. “O que foi que ele fez?” – perguntavam. “Foi ela quem pediu!” – respondiam, apontando para Salomé.

Dizem que a dançarina ainda não ficara satisfeita. Quis coroar sua vingança com um gesto retumbante, apoteótico. Então pediu que colocassem a cabeça de João Batista numa mesa e começou, com gestos lentos e excitantes, a dançar diante dela. Durante meses, anos, ele a repelira, fugira aos seus encantos. Ela queria ver agora... E contorcia-se diante do seu escalpo, daquele troféu ao seu orgulho ferido, com uma triunfante volúpia. Mas aos poucos foi parando, parando, no rosto uma expressão de contrariedade que se ia transformando em medo, e logo em horror.

         Aos gritos, chamou os guardas. E mandou levar a bandeja, a cabeça de cabelos revoltos e sujos de sangue. Não suportara a castidade que insistia em brilhar, como dois lagos azuis de inocência, nos olhos vidrados do morto.

A magia de um humor fino