Muito já foi dito sobre a atitude de Gerson de Melo Machado, morto recentemente por uma leoa na capital paraibana. O inusitado do seu gesto, no entanto, faz com que sempre haja algo mais a dizer. Gerson comentava com uma conselheira tutelar que queria ser um domador de feras. Disse-lhe que “ia pegar um avião pra ir pra um safári na África para cuidar dos leões...”. No afã de realizar esse intento, chegou a cortar uma cerca e entrar no trem de pouso de um avião da Gol; as câmeras do aeroporto impediram que o pior acontecesse.
Filho
de mãe esquizofrênica e neto de uma avó com problemas mentais, ele tinha na
genética um inimigo. Presa de mais um delírio, encenou o último ato do seu
drama (ou tragédia) aqui em João Pessoa. Imaginou que a Bica fosse um circo e
se propôs a domar um dos felinos lá existentes. Queria pôr em prática o que
durante anos acalentou como um desejo infantil. Numa espécie de transposição
entre fantasia e realidade, o domínio sobre os animais seria uma metáfora para
a vitória sobre as “feras” que interiormente o consumiam.
Acabou,
sem querer, transformando o Parque Arruda Câmara em local de um espetáculo
tenebroso. Os turistas e demais visitantes depararam-se com o que não imaginavam
encontrar num lugar dedicado à recreação e à momentânea fuga ao estresse da
cidade (mais de uma vez levei lá meus netos, que se encantavam com a fauna e a
flora diversificadas).
Há
algum tempo um leão circense arrastou uma criança que se aproximara da jaula e
a matou. Falou-se então em negligência dos responsáveis pelo circo,
também dos pais, e houve até processo. O dono do empreendimento chegou a sofrer
um ataque cardíaco. Agora a situação é outra, pois a vítima se ofereceu à sanha
do felino. Leona, como toda fêmea, era ciosa do espaço que lhe cabia guardar – e
mal esperou que o invasor tocasse o solo.
Sabe-se
que Gerson adoeceu devido a genética e desamparo. Destituído do poder familiar
da mãe, fora impedido de ser adotado – diferentemente do que ocorreu com os
quatro irmãos. Passou diante disso a ter um comportamento erradio e marginal, o
que mais ainda dificultava a sua adoção; família alguma queria receber alguém como
ele. A sociedade não lhe deixou então saída. Seu gesto foi produto de
negligência, não da administração da Bica, mas de todo um aparato social que o
condenou ao abandono.
“Atirar-se
na boca do leão” é uma expressão figurada com que se designa a atitude suicida
de alguém. Ninguém espera que esse clichê tenha um sentido literal, mas por
vezes a sociedade se encarrega de tornar realidade o que, por absurdo ou
inverossimilhante, a linguagem reserva ao domínio das figuras. Isso pode
ocorrer no plano do horrendo e também do sublime. Pode nos conceder enlevo ou
estupor. Num e noutro caso, encoraja-nos a repensar sentimentos e valores, e
nos conduz a uma mais ampla percepção de nós mesmos.