quarta-feira, 29 de outubro de 2008

"Ficar"

O verbo “ficar” tem hoje entre nós uma segunda onda de popularidade. A primeira ocorreu há cerca de dois séculos, quando Dom Pedro I conjugou-o na primeira pessoa. Dividido entre voltar a Portugal e permanecer no país que então se esboçava, ele pronunciou a frase que teria decisivas conseqüências para o nosso futuro.
A segunda onda é mais recente. Por meio dela o verbo designa, entre os jovens, uma nova forma de se relacionar com o sexo oposto. O tal do “ficar” tem sido objeto de artigos, reportagens, pesquisas de mestrado e doutorado, todos querendo entender, primeiro, em que ele consiste. Segundo, o que é que ele traduz da visão do mundo desses meninos, que parecem desencantados com as formas de relacionamento tradicionais.
O que é mesmo “ficar”? O curioso é que nem mesmo os jovens sabem. No entanto cada vez mais o conjugam, e com isso refletem o medo, a dúvida, a impossibilidade concreta ou ilusória de um relacionamento estável.
Pois “ficar” é basicamente não se comprometer. É de antemão negar-se à fidelidade pelo reconhecimento de que o outro é esquivo e incerto. É desconfiar de promessas e sonhos futuros, contentando-se com um prazer que não suscita cobranças. Para evitar decepções, desiste-se de cobrar do outro o que ele não pode e mesmo não sabe dar, e contenta-se com o efêmero de uns amassos sem maiores repercussões afetivas.
“Ficar” pressupõe descompromisso e transitoriedade. O ficante de hoje não pode ser o de amanhã. Se por acaso fica-se com a mesma pessoa uma, duas, três vezes, é aconselhável deixar bem claro que isso é pura casualidade. Não significa que ele, ou ela, seja alguém especial, pois entre os que ficam prevalece um culto ao anonimato que afasta qualquer possibilidade de alguém se tornar único, exclusivo.
Entre os “ficantes”, não se justifica a seletividade de uma escolha. O “ficar” dilui os indivíduos numa massa indefinida, orientada para o agora e o prazer. Nada de vínculos, nada de compromisso, nada de continuidade.
Isso pode ser efeito do imediatismo consumista que hoje orienta a maioria dos nossos atos. Se o mundo se transformou num grande shopping, por que não associar o prazer do consumo ao consumo do prazer? Por que não transferir ao terreno amoroso a rotatividade com que se escolhe uma roupa, um sanduíche ou um sorvete?
Num mundo em que os produtos são descartáveis, tornam-se também descartáveis as relações pessoais. A meninada procura quem possa esquecer no dia seguinte, substituindo-o por outro que logo também será esquecido. Tudo como se diz “numa boa”, sem cobranças irritantes nem grilos profundos.
Os “ficantes” não querem porto nem rumo. A superficialidade com que se relacionam não deixa marcas que alimentem a nostalgia. Chega a ser irônico que tenham escolhido um verbo que significa o oposto do que vivenciam na prática. “Ficar”, tal como eles o conjugam, traz implícita a infidelidade. É não permanecer, estar sempre disposto a partir para outra. Ou para ninguém.

2 comentários:

  1. Perfeita descrição!
    Imagine só estar inserida nesse contexto e não ter a menor afinidade por essa prática!?
    pouco trágico, não? hehe

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  2. Faço minhas as palavras de Camila. rssrsr

    Às vezes me sinto de outro mundo...

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Fidelidade latina