Todos temos uma vocação real, definida, e outras que ficam pelo caminho. À prática destas últimas costuma-se dar o nome de diletantismo. Um pintor diletante é uma pessoa que tem um filete de dom para o pincel; consciente de que nunca será um grande artista, ela se contenta com pintar por prazer. Ou por nostalgia.
Alguns se recusam a ser diletantes e rompem de vez com a vocação frustrada. Não se conformam com a prática medíocre de uma habilidade que lhes coube em grau muito pequeno. Preferem esquecer que um dia tiveram jeito para música, teatro, cinema e hoje ganham a vida num ofício que nada tem a ver com essas glamurosas manifestações do talento e da sensibilidade.
Isso é mais ou menos o que acontece comigo em relação à música. Quando eu tinha sete, oito anos, minha mãe decidiu que eu devia aprender acordeom (era assim que naquele tempo se chamava a sanfona). Chegaram a comprar um acordeom para mim e contratar uma professora particular para me dar aulas.
Foi em Campina, aí pela década de 50. Duas vezes por semana, durante mais de um ano, lá ia eu para a casa de Maria Colaço. Tinha que transportar o instrumento nas costas por cerca de dois quilômetros, mas isso não chegava a me incomodar. Era parte do sacrifício, e seria mais uma razão no futuro para que admirassem a minha obstinação.
As pessoas comentariam, quando eu fosse um grande artista, coisas do tipo: “... e tinha, coitado, que levar a sanfona nas costas por mais de seis quilômetros para ter uma hora de aula” (o exagero, evidentemente, era para compatibilizar o esforço com o tamanho da minha glória). “Dizem que chegou a ficar asmático...”. Aí existiria uma pequena confusão biográfica, comum na vida dos grandes talentos. A asma veio bem antes e não foi provocada pelo peso da sanfona, e sim por alergia a poeira, sol e friagem.
Evoluí rápido, aprendendo notas, acordes e a leitura da pauta musical. Com o tempo, estava dedilhando o “Danúbio azul” e baiõezinhos ingênuos como “Cai, cai, balão”. Eu tinha, como veem, um talento maleável e eclético. Minha mãe logo notou isso, e decidiu que não devia esperar mais. Programou uma apresentação do filho num programa infantil da Rádio Borborema – o “Clube Papai Noel”, que acontecia nos domingos de manhã. Quem o comandava era um radialista risonho e simpático chamado Heraldo César.
No dia de me apresentar, eu estava estranhamente ansioso. Cheguei a subir ao palco, mas na hora de executar o número que ensaiara tanto... fiquei paralisado. Sentia a sanfona arfando no meu peito e tentava reencontrar as notas: “Cai... cai, balão” – e nada de o balão cair, quero dizer, nada de o acordeom inflar suas notas para o auditório atônito. Lamento dizer que essa audição precoce decretou o fim da minha carreira musical. E o que me derrotou não foi o peso do instrumento, nem a asma. Foi a timidez.
("A idade do bobo", p. 137)
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