Era impossível saber o que se passava na cabeça de Salomé. Dizem que
naquela noite ela dançou melhor do que nunca, retardando os gestos voluptuosos
e coleando como a serpente do paraíso, a fim de comover o rei. Este, numa das
vezes em que ela se curvou para beijá-lo – um aperitivo para o que viria depois
–, reteve-a pelas espáduas e teria sussurrado: “Teu corpo é um monumento à
luxúria. Um monumento que se move...”. Tais palavras penetraram as entranhas da
dançarina como um vinho inebriante e tentador. Consciente da própria beleza, ciente
do seu poder, Salomé bailou tresloucada pelos jardins do palácio. Queria
impressionar o rei e pedir-lhe uma coisa. “O quê, Salomé?”
-- Depois... Mais
tarde.
Salomé estava triste. Não dançava para
encantar o rei, pois este ela já havia conquistado. Com o manto revolto e a
coroa caída, o monarca era uma imagem de rendição. Dançava era para esquecer
que, assim tão bela e desejável, fora recusada por João Batista. Quem era João,
aquele rústico e insano que comia gafanhotos, vestia-se de peles e dizia
palavras sem nexo, falando de um reino onde pouco valiam os atributos do corpo
– quem era ele para menosprezar uma beleza pela qual suspiravam os ricos, os
nobres, os reis? Quem era ele para desprezá-la?
Quanto mais pensava nisto, mais e melhor Salomé
dançava. Nunca se vira tanto vigor em seus gestos, tanta compassada violência
em seus requebros de serpente irada. Em dado momento Salomé parou. Foi até o
rei – que emborcava mais uma taça de vinho – e sussurrou-lhe com a língua
untuosa alguma coisa no ouvido. Sua Majestade jogou fora o copo e se levantou
de um jato, repentinamente sóbrio: “A cabeça?! Mas como, a cabeça?!”
-- Aqui e já, numa
bandeja. Como uma prova de que Vossa Majestade me ama e me quer.
O rei chamou a guarda e ordenou que
imediatamente se cumprisse o desejo de Salomé. Que localizassem João e, sem lhe
dar tempo de dizer palavra – pois falando ele era perigoso e sedutor, se bem
que em outro sentido –, cortassem-lhe a cabeça e a levassem até ali.
Fez-se
rápido a vontade real. Alguns minutos depois, como se fosse parte de um menu
imprevisto e grotesco, a cabeça de João era servida à atônita curiosidade dos
presentes. “O que foi que ele fez?” – perguntavam. “Foi ela quem pediu!” –
respondiam, apontando para Salomé.
Dizem que a dançarina ainda não ficara
satisfeita. Quis coroar sua vingança com um gesto retumbante, apoteótico. Então
pediu que colocassem a cabeça de João Batista numa mesa e começou, com gestos
lentos e excitantes, a dançar diante dela. Durante meses, anos ele a repelira,
fugira aos seus encantos. Ela queria ver agora... E contorcia-se diante do seu
escalpo, daquele troféu ao seu orgulho ferido, com uma triunfante volúpia.
Mas aos poucos foi parando, parando, no rosto
uma expressão de contrariedade que se ia transformando em medo, e logo em
horror. Aos gritos, chamou os guardas e mandou levar a bandeja, a cabeça de
cabelos revoltos e sujos de sangue.
Não suportara a castidade que insistia em
brilhar, como dois lagos azuis de inocência, nos olhos vidrados do morto.
(“A rosa fenecida, p. 45” Leia o livro em: http://www.bookess.com/read/14343-a-rosa-fenecida)
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