domingo, 21 de junho de 2015

O santo e a odalisca

         Era impossível saber o que se passava na cabeça de Salomé. Dizem que naquela noite ela dançou melhor do que nunca, retardando os gestos voluptuosos e coleando como a serpente do paraíso, a fim de comover o rei. Este, numa das vezes em que ela se curvou para beijá-lo – um aperitivo para o que viria depois –, reteve-a pelas espáduas e teria sussurrado: “Teu corpo é um monumento à luxúria. Um monumento que se move...”. Tais palavras penetraram as entranhas da dançarina como um vinho inebriante e tentador. Consciente da própria beleza, ciente do seu poder, Salomé bailou tresloucada pelos jardins do palácio. Queria impressionar o rei e pedir-lhe uma coisa. “O quê, Salomé?”
            -- Depois... Mais tarde.
Salomé estava triste. Não dançava para encantar o rei, pois este ela já havia conquistado. Com o manto revolto e a coroa caída, o monarca era uma imagem de rendição. Dançava era para esquecer que, assim tão bela e desejável, fora recusada por João Batista. Quem era João, aquele rústico e insano que comia gafanhotos, vestia-se de peles e dizia palavras sem nexo, falando de um reino onde pouco valiam os atributos do corpo – quem era ele para menosprezar uma beleza pela qual suspiravam os ricos, os nobres, os reis? Quem era ele para desprezá-la?
Quanto mais pensava nisto, mais e melhor Salomé dançava. Nunca se vira tanto vigor em seus gestos, tanta compassada violência em seus requebros de serpente irada. Em dado momento Salomé parou. Foi até o rei – que emborcava mais uma taça de vinho – e sussurrou-lhe com a língua untuosa alguma coisa no ouvido. Sua Majestade jogou fora o copo e se levantou de um jato, repentinamente sóbrio: “A cabeça?! Mas como, a cabeça?!”
         -- Aqui e já, numa bandeja. Como uma prova de que Vossa Majestade me ama e me quer. 
O rei chamou a guarda e ordenou que imediatamente se cumprisse o desejo de Salomé. Que localizassem João e, sem lhe dar tempo de dizer palavra – pois falando ele era perigoso e sedutor, se bem que em outro sentido –, cortassem-lhe a cabeça e a levassem até ali.   
 Fez-se rápido a vontade real. Alguns minutos depois, como se fosse parte de um menu imprevisto e grotesco, a cabeça de João era servida à atônita curiosidade dos presentes. “O que foi que ele fez?” – perguntavam. “Foi ela quem pediu!” – respondiam, apontando para Salomé.
Dizem que a dançarina ainda não ficara satisfeita. Quis coroar sua vingança com um gesto retumbante, apoteótico. Então pediu que colocassem a cabeça de João Batista numa mesa e começou, com gestos lentos e excitantes, a dançar diante dela. Durante meses, anos ele a repelira, fugira aos seus encantos. Ela queria ver agora... E contorcia-se diante do seu escalpo, daquele troféu ao seu orgulho ferido, com uma triunfante volúpia.
Mas aos poucos foi parando, parando, no rosto uma expressão de contrariedade que se ia transformando em medo, e logo em horror. Aos gritos, chamou os guardas e mandou levar a bandeja, a cabeça de cabelos revoltos e sujos de sangue.
Não suportara a castidade que insistia em brilhar, como dois lagos azuis de inocência, nos olhos vidrados do morto.


(“A rosa fenecida, p. 45” Leia o livro em:  http://www.bookess.com/read/14343-a-rosa-fenecida)

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O silêncio do inocente