segunda-feira, 7 de novembro de 2016

Surpresa no sítio

         “Marlene vê Nossa Senhora” – falou minha mãe com o ar muito sério. Isso era um anúncio e uma advertência. Significava que eu devia me comportar bem no sítio onde Marlene residia com os pais e dois irmãos. Eram amigos um pouco distantes da nossa família, e tínhamos sido convidados sobretudo para constatar as transcendentes habilidades da moça.            
Para falar a verdade, eu não estava interessado nisso. Pensava sobretudo nos dias livres que passaria entre banhos de rio, visitas ao curral, excursões em busca de passarinhos que eu alvejaria com a baladeira (hipótese que hoje me horroriza, mas ao menino daquele tempo parecia natural. Mesmo porque na época ninguém era punido por matar rolinhas, ribaçãs e outros bichinhos inocentes que cortavam o céu).
Viajamos de ônibus por uma estrada esburacada. Depois de umas três horas de sacolejo e poeira chegamos ao sítio, onde fomos recebidos com a hospitalidade própria da gente do interior. O dono, Seu Aníbal, fazia tudo para nos deixar à vontade. O mesmo se diga da mulher dele. Dona Adalgisa era muito religiosa e só falava do que estava acontecendo com a filha. Já pensava em mandá-la para um convento.  
Marlene era uma morena tímida e simpática. Por exigência da mãe usava cabelos curtos, vestidos muito longos, e só vestia branco. Essa era a cor que melhor se ajustava ao seu beatífico dom.  
O melhor do sítio, para mim, era o curral. Acordávamos cedo e íamos ver os filhos de Seu Aníbal tirar leite das vacas. Quem melhor fazia isso, porém, não era nenhum dos dois. Era Solon, um rapaz que morava no sítio vizinho e frequentemente vinha dar uma mão à família. Por alguma habilidade especial, ele conseguia extrair mais leite do que os irmãos de Marlene. Seu Aníbal elogiava a maneira como o rapaz apertava as tetas das vacas, cujos úberes por assim dizer se abriam àquele experiente contato. O rapaz nascera mesmo com jeito.    
Na primeira sexta-feira após a nossa chegada, fomos a um quarto transformado em capela a fim de acompanhar o terço. Era sempre ao final dele, e na última sexta-feira de cada mês, que se dava o fenômeno. Ninguém conseguiu rezar direito, atento à expressão da moça. Pouco antes de a “visão” aparecer, a mãe fez o alerta: “Vai ser agora!”.
Vimos Marlene abrir muito os olhos, que se inundaram de luz, e contemplar um ponto distante. Estava um pouco vermelha e falou umas palavras que ninguém entendeu. Dona Adalgisa, chorando, segurava a mão da filha como se tivesse medo de que ela fosse deixar este mundo. A aparição durou uns três minutos, e não posso negar que saímos da capela impressionados.
          De volta a casa, comentamos o assunto por uns dias.  Até que ponto deveríamos levar a sério o que ocorrera naquele quarto? Teria de fato a moça algum dom superior, ou virtudes sobre-humanas que lhe conferiam alguma forma de santidade? Como era impossível responder essas perguntas, acabamos esquecendo-a.
Uns quatro meses depois, veio do sítio a notícia: Marlene estava grávida. Grávida, sim, e o responsável era Solon. Rimos bastante da novidade, e mais ainda da surpresa que ela certamente causou a Dona Adalgisa.

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O silêncio do inocente