“Marlene
vê Nossa Senhora” – falou minha mãe com o ar muito sério. Isso era um anúncio e
uma advertência. Significava que eu devia me comportar bem no sítio onde Marlene
residia com os pais e dois irmãos. Eram amigos um pouco distantes da nossa
família, e tínhamos sido convidados sobretudo para constatar as transcendentes habilidades
da moça.
Para falar a verdade, eu não estava interessado nisso.
Pensava sobretudo nos dias livres que passaria entre banhos de rio, visitas ao
curral, excursões em busca de passarinhos que eu alvejaria com a baladeira
(hipótese que hoje me horroriza, mas ao menino daquele tempo parecia natural.
Mesmo porque na época ninguém era punido por matar rolinhas, ribaçãs e outros
bichinhos inocentes que cortavam o céu).
Viajamos de ônibus por uma estrada esburacada. Depois
de umas três horas de sacolejo e poeira chegamos ao sítio, onde fomos recebidos
com a hospitalidade própria da gente do interior. O dono, Seu Aníbal, fazia
tudo para nos deixar à vontade. O mesmo se diga da mulher dele. Dona Adalgisa era
muito religiosa e só falava do que estava acontecendo com a filha. Já pensava
em mandá-la para um convento.
Marlene era uma morena tímida e simpática. Por
exigência da mãe usava cabelos curtos, vestidos muito longos, e só vestia
branco. Essa era a cor que melhor se ajustava ao seu beatífico dom.
O melhor do sítio, para mim, era o curral. Acordávamos
cedo e íamos ver os filhos de Seu Aníbal tirar leite das vacas. Quem melhor
fazia isso, porém, não era nenhum dos dois. Era Solon, um rapaz que morava no sítio
vizinho e frequentemente vinha dar uma mão à família. Por alguma habilidade
especial, ele conseguia extrair mais leite do que os irmãos de Marlene. Seu
Aníbal elogiava a maneira como o rapaz apertava as tetas das vacas, cujos
úberes por assim dizer se abriam àquele experiente contato. O rapaz nascera
mesmo com jeito.
Na primeira sexta-feira após a nossa chegada, fomos a
um quarto transformado em capela a fim de acompanhar o terço. Era sempre ao
final dele, e na última sexta-feira de cada mês, que se dava o fenômeno. Ninguém
conseguiu rezar direito, atento à expressão da moça. Pouco antes de a “visão” aparecer,
a mãe fez o alerta: “Vai ser agora!”.
Vimos Marlene abrir muito os olhos, que se inundaram
de luz, e contemplar um ponto distante. Estava um pouco vermelha e falou umas
palavras que ninguém entendeu. Dona Adalgisa, chorando, segurava a mão da filha
como se tivesse medo de que ela fosse deixar este mundo. A aparição durou uns
três minutos, e não posso negar que saímos da capela impressionados.
De volta a casa, comentamos o assunto
por uns dias. Até que ponto deveríamos
levar a sério o que ocorrera naquele quarto? Teria de fato a moça algum dom
superior, ou virtudes sobre-humanas que lhe conferiam alguma forma de
santidade? Como era impossível responder essas perguntas, acabamos esquecendo-a.
Uns quatro meses depois, veio do sítio a notícia: Marlene
estava grávida. Grávida, sim, e o responsável era Solon. Rimos bastante da
novidade, e mais ainda da surpresa que ela certamente causou a Dona Adalgisa.
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