Não estranhem o título. Ele faz referência
ao hábito politicamente correto de proibir letras de Carnaval nas quais haveria
preconceito contra determinados grupos. Tentaram fazer isso com “Tropicália” e “Cabeleira
do Zezé”, mas como se viu a tentativa não vingou. O pessoal continua dando
vivas à “mulata ta ta ta ta” e perguntando se, com aquela juba farta, o tal
Zezé... “é” ou não.
Mas o politicamente correto é
insaciável. Quem pensa que ele se sentiu derrotado não sabe de que a sua
voracidade é capaz. Diante disso, resolvi dar minha modesta contribuição. Afinal
de contas, o que caracteriza o Carnaval é a inversão de valores e papéis
sociais. Basta lembrar que na Idade Média, durante essa época, costumava-se
destronar a autoridade real e coroar um indivíduo do povo. Daí veio a figura do
Rei Momo, que hoje circula por ruas e salões afetando uma majestade que está
longe de ter.
Mas vamos ao meu contributo, que consistirá
por enquanto numa breve indicação de músicas que devem se acrescentar às duas já
mencionadas.
Comecemos por “Aurora”. Trata-se de uma
marchinha aparentemente inócua. Essa impressão muda quando se observam com
atenção os versos iniciais: “Se você fosse sincera,/ô ô ô ô Aurora,/ veja só
que bom que era,/ô ô ô ô Aurora.” A desconfiança
sobre a sinceridade de Aurora reflete uma mentalidade machista. Se não é
sincera, Aurora mente, e mentindo lança sobre as pessoas do seu gênero a sombra
do ardil e da trapaça. Como não relacionar isso com a mentira que Eva pregou em
Adão para que ele, inocentemente, comesse a maçã? Proponho então que se decrete
o crepúsculo de “Aurora”, deixando de cantá-la e dançá-la nas ruas e nos
salões.
E “Máscara Negra”? Todos conhecem o clássico
de Ze Kéti e Pereira Matos. É sem dúvida uma música bonita, mas lamento dizer
que não deve mais ser cantada. Se não, vejamos. No finalzinho da letra o
“Pierrô” diz à “Colombina”: “Vou beijar-te agora/ não me leve a mal/ hoje é
Carnaval.” Perceberam a atitude
autoritária e truculenta? Quem pode negar que isso é assédio? Ele se propõe a
beijar a mulher sem o seu consentimento e cinicamente pede que ela não o leve a
mal (ou seja, tem consciência de que o beijo vai de alguma forma importuná-la).
“Máscara negra” deve ficar de fora em respeito à integridade do corpo da mulher,
que tem o direito de beijar (e ser beijada) por quem ela queira. Afinal de
contas, Não é Não.
Acho que se deve incluir também “Jardineira”.
Essa marchinha parece de um lirismo inocente, mas não deve mais constar no
repertório carnavalesco. Quem não se lembra da letra? Indagada sobre a sua
intensa tristeza, a moça responde que o motivo foi uma camélia que caiu do galho
e morreu depois de dar dois suspiros. O emissor diz então à moça que não fique triste
porque ela tem o mundo ao seu dispor e (prestem atenção agora!) é muito mais
bonita do que a camélia que morreu. Ou seja, ele aceita alegremente a morte da
flor, o que mostra pouco respeito pela Natureza (e, por extensão, pela ecologia).
E “Marcha da Cueca”? A letra é bastante
conhecida. Alguém se diz disposto a matar quem roubou sua cueca para fazer pano
de prato. Até aí nada grave. Pode-se interpretar o propósito homicida como uma
hipérbole; o emissor estaria indignado com quem deu essa inusitada serventia a
sua roupa íntima. O grave aparece depois, quando ele confessa que a cueca foi
um presente que ganhou... da namorada. Namorada dar cueca de presente? Para fazer
isso ela devia desaprovar as roupas de baixo que ele usava. E como conheceu
essas roupas?! Essa música constitui um péssimo exemplo para os jovens que namoram
com recato e decência.
Fico por aqui a fim de não aborrecer o leitor. Minhas pesquisas, no entanto, vão continuar (a propósito, acabou de me ocorrer “Pirata da perna de pau”, que deve ser banida em respeito aos deficientes físicos). Aguardem novas contribuições, pois com um pouco de boa vontade (e espírito carnavalesco!) é possível considerar o politicamente correto como um baluarte contra as brigadas da intolerância e do preconceito. Ele ainda vai mudar este país.
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