terça-feira, 21 de maio de 2024

A herança de Freud


 

Fiz análise durante um tempo para me libertar da dependência do Rivotril. Eu tinha na época cerca de 26 anos e desenvolvi um brutal processo de ansiedade devido ao conflito que vivenciava no curso de Medicina. Não nascera para ser médico, e me via obrigado a lidar com pacientes em aulas de disciplinas como Semiologia e Técnica Cirúrgica. Segurei o quanto pude, até que veio a reação: síndrome do pânico, taquicardia, sensação de morte e um quadro depressivo-ansioso que durou cerca de dois anos.   

A terapia ajudou a me libertar do Rivotril, um dos medicamentos prescritos na época. A dependência que ele causa, como se sabe, é química e também psicológica. Foi preciso muita conversa com Luiz Maia para, aos poucos, eu me convencer de que a dose mínima à qual chegara, por esforço próprio, não passava de um placebo. Ingeri-la era uma espécie de ritual que aliviava a tensão e me permitia dormir.  

A psicoterapia também serviu para que eu lidasse melhor com velhas culpas familiares. Delas não me libertei totalmente, mas a reflexão sobre o papel de certos entes da família me levou a compreendê-los e aceitá-los. O processo se completava com a literatura, que por sinal serviu de base ao mestre vienense para criar o seu método. “Filho, desiste de lutar contra mim. Há mais de mim em você do que de você mesmo.” Como não vislumbrar o conflito edipiano numa indagação como essa, que aparece num conto de Dalton Trevisan?    

Escrevo estas linhas porque é frequente hoje o debate sobre a eficiência da psicanálise. Segundo alguns, como método terapêutico ela tem perdido terreno para procedimentos mais práticos e objetivos, como os que prescreve a psicologia cognitivo-comportamental. Para outros, entre os quais me incluo, o valor da psicanálise situa-se além do divã; está em seus reflexos na cultura.

A psicanálise não é apenas um método clínico. É uma forma original de ver o ser humano. Antes de Freud “descobrir” o inconsciente, o homem se contentava com a soberania da razão. Achava, com Descartes, que só existia porque pensava. O mestre vienense alargou a dimensão do eu; mostrou quedomínios obscuros, irracionais, que determinam o que somos – ou o que desejamos ser.

O contato com a obra de Freud se intensificou com a elaboração da minha tese de Doutorado. Desde as primeiras leituras dos poemas de Augusto dos Anjos, impressionaram-me as imagens de culpa e melancolia de que eles estão recheados. Por que tanto remorso? – eu me perguntava. Que instrumento teórico seria mais adequado para interpretar aquelas imagens de peso, carga, doença, deterioração da matéria, rejeição da sexualidade?

A psicanálise me permitiu interligar os vários signos que remetem a problemática do “eu” a uma culpa atávica. Alguma coisa como o “pecado original”. Quem Augusto não se depara apenas com o drama do indivíduo; ele não fala apenas de si. Não é um lírico, pois refere uma Dor que é de toda a humanidade.

A leitura da obra de Freud não somente me serviu de orientação para a tese. Também me fez compreender melhor o homem em seu conflito consigo e com a civilização. Li-a (não toda, ainda) como quem um romance com cujo personagem principal é impossível não se identificar: o ego.

Todos somos egos e estamos no centro de uma luta penosa entre uma porção instintiva, que procura realizar seus desejos, e um supervisor às vezes tirânico chamado superego. Nesse drama está, por assim dizer, a nossa essência. 

Temos que servir a dois senhores, como diz o criador da psicanálise. E o mais das vezes rejeitar os prazeres em prol dos interesses da civilização. A vida é renúncia – e vejam como nisso o ateu Freud se aproxima da mensagem cristã. 

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