quarta-feira, 22 de janeiro de 2025

Sombras e cores do passado

         

          Em “Esboço em pedra e sonho”, Marilia Arnaud constrói uma trama envolvente, com personagens ricos de substância humana e um domínio do tempo narrativo que leva o leitor a se manter na expectativa até o desfecho. Narrado em primeira pessoa, o romance conta o retorno da personagem Ramona a Santo Antônio das Pedras, cidade onde viveu parte da infância e da adolescência, a fim de tratar da escritura de uma casa que lhe ficou como herança. Nessa casa morou com as tias (Anunciada e Concebida) e o avô Graciliano, que forte influência exerceu na sua formação.   

O Avô (sempre mencionado com letra maiúscula) ocupou o lugar do pai que ela não teve, pois abandonou cedo a família, e lhe deu o sobrenome que faltava na certidão de nascimento, preenchendo um vazio que desde muito cedo a angustiava (“Nunca pensei que a falta de um nome de família pudesse ser tão grave”). Graciliano é o destinatário de Ramona, que a ele se dirige ao longo da narrativa a fim de esclarecer pontos obscuros e dolorosos de uma vivência marcada por relações tensas, e por vezes enigmáticas, com parentes e amigos. “Penso no tempo, e no quanto ele se tece do mesmo mistério da vida, os anos a escavar rugas sinais, cicatrizes, cansaços, e o silêncio no fundo de tudo” – observa a personagem. É para destravar esse silêncio que ela conta a sua história.

Ramona estrutura o seu discurso com o esmero que aplica às telas produzidas no trabalho de artista plástica. O gosto pela pintura lhe veio, em grande parte, da observação das telas do pintor Tonho Mefisto – personagem em conflito consigo mesmo e descrente do próprio talento (que ele na verdade tinha). Marilia costuma dar indicações sobre a configuração psicológica de seus personagens por meio dos nomes que escolhe para eles, e isso fica bem claro na designação que aplica a Tonho.

“Mefisto” é uma redução de Mefistófeles, o demoníaco personagem com quem Fausto faz um pacto para conseguir o conhecimento e alcançar a glória. Ao optar pela pintura, em que se revelaria melhor conhecedora do que praticante, Ramona de certo modo se deixa seduzir por ele. E confirma tal sedução no testemunho dado anos depois de ter os primeiros contatos com o pintor: “Agora exalto o talento puríssimo de Tonho Mefisto, seu amor à Arte, a excentricidade, o niilismo, e revelo ainda o fascínio e o estranhamento que suas pinturas provocavam em mim.”

           Na volta ao lugar onde foi criada, a personagem não deixa de emitir juízos severos sobre figuras com quem conviveu; seu relato, afinal, é uma espécie de acerto de contas. Critica, por exemplo, a hipocrisia religiosa, personificada na figura da tia Concebida (veja-se a ironia presente nesse nome), que fora flagrada por ela num ato sexual com o padre Lauro. E investe contra a ingênua idolatria do povo à figura de Frei Damião, que na opinião do Avô “é um homem retrógrado, de ideias medievais, missionário de um evangelho morto”. A neta o acompanha nesse juízo negativo, enfatizando num tom caricato os gestos mecânicos do religioso e a sua incapacidade de se comunicar com as pessoas: “De quarto em quarto, sob o olhar penitente da tia, ele ergue uma das mãos, traças dezenas de cruzes no ar, bodeja uma prece secreta.”

Ao “evangelho morto” do religioso, o Avô opõe a crença na revolução socialista, alimentada em reuniões secretas que acabam lhe custando a prisão. O nome dele, por sinal, é o mesmo do grande escritor alagoano que, por sua adesão ao Partido Comunista, foi encarcerado pela polícia de Getúlio Vargas durante o Estado Novo; há nisso mais do que coincidência. A detenção do Avô associa-se à decepção da protagonista com uma velha amiga e marca, por assim dizer, o clímax do romance.

Na volta do recolhimento compulsório, a debilitada figura do velho repercute dolorosamente em Ramona; ele não é mais o que era: “À primeira vista, tive a impressão de que encolheras – olhos soterrados nas covas do rosto, barba de meses por fazer, a boca afundada entre duas rugas que desciam em direção ao queixo, cabelos prateados na cabeça. Parecias pedir desculpas por estar vivo.” A narradora não deixa de vincular o desmonte dessa figura rica em bondade e virtudes morais, que tanta importância teve em sua vida, ao triste momento político pelo qual o país passava.

Em texto sobre “O pássaro secreto”, romance anterior de Marilia, procurei destacar o expressionismo da linguagem como uma marca do seu estilo. Esse traço se verifica até com mais ênfase neste “Esboço...”, levando a uma intensificada representação de atributos, ações e estados psicológicos. Assim, um garoto que em determinado momento debocha de Ramona é pintado como tendo “pestanas de vassourinha”; o bullying que a personagem sofre por parte das colegas da escola devido ao abandono paterno leva-a a sentir “os olhos das meninas a (lhe) tirar pedaços”; o pânico na primeira ida ao dentista faz com que sinta “um pedido de clemência a se esganiçar dentro de (si)” – entre outras construções em que a narradora (e pintora) “carrega nas tintas” para caracterizar pessoas e externar emoções. 

“Esboço em pedra e sonho” cumpre o que o seu antitético título parece preconizar. É um misto da dureza da vida, com seus lances de orfandade, traição e desencanto, e da libertadora fantasia propiciada pela vivência da arte. Grosso modo, pode-se dizer que apenas num ponto o título desmente a obra: na denominação de “esboço” a algo tão consumado quanto o talento da autora.

domingo, 12 de janeiro de 2025

Mirtes, a traça

            

Fazia tempo que eu vinha notando, mas o prudente era fingir ignorância. Durante a época de aulas, tudo bem, foi possível manter­-me indiferente. Mas não agora, que longos ócios me obrigam a horas no gabinete. Agora tenho de enfrentar Mirtes e a sua ronha, sua reima de tisanuro roaz.

De noite sinto que me espreita por detrás de uma lombada. Às vezes, sutil, entre linhas ou nalgum subtítulo. Fora isso polvilha infólios e avaria vade-mécuns, Quando não, renitente, rói erratas. E não gosta do passado, Mirtes. Também não quer o futuro. Com a mesma fome devora alfarrábios e ceifa a science fiction. Despreza tanto o nouveau roman, que nenhum bem lhe fez à garganta, quanto as irrupções de neorrealismo latino-americano, que devora a partir das epígrafes. Com uma espécie de deleite reacionário.

Na estante ela prefere o primeiro andar – a família se distribui pelo resto; pois Mirtes é a família, todos com a mesma fome no focinho atávico. Mirtes se posta entre os livros de iniciação. Por algum motivo que não alcanço, detesta propedêutica; já fez em pedacinhos uma Introdução à Filosofia escrita por um grupo de estruturalistas.

Também dilacerou, embora com menor sanha, um guia para o estudo e a compreensão da Semiótica. Não sei o que espere. Mirtes quer me privar de alimento e sentido, eis a verdade. Numa etapa em que não posso voltar atrás, quer me deixar num ermo sem rumo – a traça!

Conforme já disse, ela não é única – é toda uma família. E o traço comum à grei é um dentinho ávido como uma broca, a perfurar como uma ideia fixa. A legião microscópica se dissemina por igual, no intuito bíblico de fazer o homem – seu tesouro de papel – voltar ao pó.

Embora igualitária no seu afã destrutivo, Mirtes demonstra às vezes preferências incompreensíveis. Como entender, por exemplo, que ela tenha destruído o “Idade, sexo e tempo”, de Alceu, e preservado as “Lições de abismo” – do Corção? Pois fez. E o seu gosto pelo passado se confirmou um pavimento abaixo; ali arruinou dois livros de Leonardo Boff e poupou as Confissões de Santo Agostinho, estando um ao lado do outro. Também pulverizou o Ulisses moderno, de Joyce, recusando-se a descosturar o que Homero urdiu há milênios.

Além de passadista, imprevisível. Com Descartes agiu sem método, iniciando a trituração ora pelos cantos, ora pelo meio das páginas. Diferente do que fez com Sartre, o velho bruxo, que preferiu atacar somente pelo âmago, inoculando-lhe por assim dizer a morte na alma.

          Ainda não sei contra quê ou contra quem trabalha Mirtes. Será tão só inimiga do papel, suporte físico das ideias humanas? Também da disposição gráfica, combinação voluptuosa de tinta e talhe? Talvez dos dois e de alguma coisa mais.

      Importa é que Mirtes faz sempre a refeição completa, jantando no concreto o abstrato, no corpo a alma. Nos livros, o homem.

quinta-feira, 9 de janeiro de 2025

Sobre o tempo e o prazo

Deus criou o tempo, e o Diabo nos fez criar o prazo. 

O tempo (ou a percepção de que existe algo com esse nome) é um fluir interminável, do qual participa (e depende) tudo que existe na Natureza e no Cosmo. É a condição para que as coisas mudem e a vida se processe do nascimento à morte. Ele não tem fronteiras, pois constitui um eterno devir. 

Já o prazo é uma fração do tempo determinada pelos deveres e compromissos que a vida social nos impõe. É arbitrado segundo intenções bem concretas, atendendo a limites que nos obrigam a agir, o mais das vezes, sob pressão. É, enfim, a substituição do devir pelo dever.

O tempo tem algo de transcendente e imodificável (a não ser na equação einsteiniana), enquanto que o prazo se estica ou reduz conforme determinados apelos ou circunstâncias; e depende da forma como sentimos determinados eventos. 

Quem não já percebeu que o que é ruim passa mais devagar? Ou, para lembrar Bergson, “dura” mais? A duração, categoria intuída pelo filósofo francês, está ligada ao  prazer ou desprazer que os acontecimentos provocam em nós.

Quando alguém diz que quer “um pouco mais de tempo” para saldar uma dívida ou vivenciar uma experiência, quer na verdade dizer que deseja um prazo maior. O tempo é inteiro e não se quantifica.

Nosso medo da morte se liga, não à passagem do tempo, mas à constatação de que a vida tem um prazo ditado pelas condições biológicas. O prazo nos faz naufragar no rio do tempo, cujo fluir se confunde com a eternidade. 

História arcaica