Em “Esboço em pedra e sonho”, Marilia Arnaud constrói uma trama envolvente, com personagens ricos de substância humana e um domínio do tempo narrativo que leva o leitor a se manter na expectativa até o desfecho. Narrado em primeira pessoa, o romance conta o retorno da personagem Ramona a Santo Antônio das Pedras, cidade onde viveu parte da infância e da adolescência, a fim de tratar da escritura de uma casa que lhe ficou como herança. Nessa casa morou com as tias (Anunciada e Concebida) e o avô Graciliano, que forte influência exerceu na sua formação.
O
Avô (sempre mencionado com letra maiúscula) ocupou o lugar do pai que ela não
teve, pois abandonou cedo a família, e lhe deu o sobrenome que faltava na certidão
de nascimento, preenchendo um vazio que desde muito cedo a angustiava (“Nunca
pensei que a falta de um nome de família pudesse ser tão grave”). Graciliano é
o destinatário de Ramona, que a ele se dirige ao longo da narrativa a fim de esclarecer
pontos obscuros e dolorosos de uma vivência marcada por relações tensas, e por
vezes enigmáticas, com parentes e amigos. “Penso no tempo, e no quanto ele se
tece do mesmo mistério da vida, os anos a escavar rugas sinais, cicatrizes,
cansaços, e o silêncio no fundo de tudo” – observa a personagem. É para
destravar esse silêncio que ela conta a sua história.
Ramona
estrutura o seu discurso com o esmero que aplica às telas produzidas no
trabalho de artista plástica. O gosto pela pintura lhe veio, em grande parte,
da observação das telas do pintor Tonho Mefisto – personagem em conflito
consigo mesmo e descrente do próprio talento (que ele na verdade tinha). Marilia
costuma dar indicações sobre a configuração psicológica de seus personagens por
meio dos nomes que escolhe para eles, e isso fica bem claro na designação que
aplica a Tonho.
“Mefisto”
é uma redução de Mefistófeles, o demoníaco personagem com quem Fausto faz um
pacto para conseguir o conhecimento e alcançar a glória. Ao optar pela pintura,
em que se revelaria melhor conhecedora do que praticante, Ramona de certo modo
se deixa seduzir por ele. E confirma tal sedução no testemunho dado anos depois
de ter os primeiros contatos com o pintor: “Agora exalto o talento puríssimo de
Tonho Mefisto, seu amor à Arte, a excentricidade, o niilismo, e revelo ainda o
fascínio e o estranhamento que suas pinturas provocavam em mim.”
Na volta ao lugar onde foi criada, a
personagem não deixa de emitir juízos severos sobre figuras com quem conviveu;
seu relato, afinal, é uma espécie de acerto de contas. Critica, por exemplo, a
hipocrisia religiosa, personificada na figura da tia Concebida (veja-se a
ironia presente nesse nome), que fora flagrada por ela num ato sexual com o
padre Lauro. E investe contra a ingênua idolatria do povo à figura de Frei
Damião, que na opinião do Avô “é um homem retrógrado, de ideias medievais,
missionário de um evangelho morto”. A neta o acompanha nesse juízo negativo,
enfatizando num tom caricato os gestos mecânicos do religioso e a sua incapacidade
de se comunicar com as pessoas: “De quarto em quarto, sob o olhar penitente da
tia, ele ergue uma das mãos, traças dezenas de cruzes no ar, bodeja uma prece
secreta.”
Ao
“evangelho morto” do religioso, o Avô opõe a crença na revolução socialista,
alimentada em reuniões secretas que acabam lhe custando a prisão. O nome dele, por
sinal, é o mesmo do grande escritor alagoano que, por sua adesão ao Partido
Comunista, foi encarcerado pela polícia de Getúlio Vargas durante o Estado Novo;
há nisso mais do que coincidência. A detenção do Avô associa-se à decepção da
protagonista com uma velha amiga e marca, por assim dizer, o clímax do romance.
Na
volta do recolhimento compulsório, a debilitada figura do velho repercute
dolorosamente em Ramona; ele não é mais o que era: “À primeira vista, tive a impressão
de que encolheras – olhos soterrados nas covas do rosto, barba de meses por
fazer, a boca afundada entre duas rugas que desciam em direção ao queixo,
cabelos prateados na cabeça. Parecias pedir desculpas por estar vivo.” A
narradora não deixa de vincular o desmonte dessa figura rica em bondade e virtudes
morais, que tanta importância teve em sua vida, ao triste momento político pelo
qual o país passava.
Em
texto sobre “O pássaro secreto”, romance anterior de Marilia, procurei destacar
o expressionismo da linguagem como uma marca do seu estilo. Esse traço se verifica
até com mais ênfase neste “Esboço...”, levando a uma intensificada representação
de atributos, ações e estados psicológicos. Assim, um garoto que em determinado
momento debocha de Ramona é pintado como tendo “pestanas de vassourinha”; o bullying
que a personagem sofre por parte das colegas da escola devido ao abandono paterno
leva-a a sentir “os olhos das meninas a (lhe) tirar pedaços”; o pânico na primeira
ida ao dentista faz com que sinta “um pedido de clemência a se esganiçar dentro
de (si)” – entre outras construções em que a narradora (e pintora) “carrega nas
tintas” para caracterizar pessoas e externar emoções.
“Esboço
em pedra e sonho” cumpre o que o seu antitético título parece preconizar. É um
misto da dureza da vida, com seus lances de orfandade, traição e desencanto, e
da libertadora fantasia propiciada pela vivência da arte. Grosso modo, pode-se
dizer que apenas num ponto o título desmente a obra: na denominação de “esboço”
a algo tão consumado quanto o talento da autora.