Fala-se muito
do Machado dos romances
e dos contos, e pouco se comenta o Machado de Assis cronista. Mas
o velho Bruxo também
foi bom nesse gênero.
Uma boa oportunidade de constatar
isso é ler “Fuga do hospício”.
Em relação ao romance,
ao conto e à poesia,
a crônica é considerada um gênero menor. Geralmente
ela se atrela ao jornal,
o que tende a lhe
conferir um caráter efêmero.
O cronista escreve para o hoje,
não para a posteridade. Mas isso é verdade
até certo
ponto, pois não se aplica aos grandes
estilistas. É basicamente o estilo que salva a crônica
do efêmero, e disso há muitos exemplos
em nossa
literatura. Entre
eles destaco Rubem Braga, Nelson
Rodrigues e o próprio Machado.
A crônica
mescla seriedade
e frivolidade, é uma forma
de associar o útil
ao fútil – caracterização, por sinal,
que o próprio Machado criou. O cronista não
tempo nem espaço para esmiuçar a alma humana, como faz o autor
de ficção. Seu
território são
as emoções de superfície,
produzidas pelo impacto
dos acontecimentos. Ao mesmo tempo, ele usa
essa aparente trivialidade como ponto de partida para tecer comentários sobre a
natureza humana, a sociedade e a política da sua época. Em Machado, por
exemplo, uma simples fofoca de sociedade pode ensejar uma reflexão sobre a vaidade
ou a hipocrisia. Não raro ele
responde aos fatos com
ironia e humor, domínios em que é reconhecidamente mestre.
A fuga dos habitantes
de um hospício,
por exemplo,
lhe serve de pretexto
para a reflexão
sobre a frágil
fronteira entre
sanidade e loucura,
tema que enfocou genialmente na novela “O alienista”. “Uma vez
que se foge do hospício
de alienados (e não
acuso por isso
a administração), onde
acharei método para
distinguir um
louco de um
homem de juízo?”.
O cronista vê na sagaz
estratégia que
os loucos empregaram para
a fuga uma forma
de inteligência que
“diminuiu em grande
parte a vantagem
de ter juízo”.
Um dos temas recorrentes no livro é o impacto
dos bonds elétricos
na vida das pessoas.
Eles vieram aposentar
as carruagens puxadas
a burros mas,
como tudo
que representa progresso,
criaram novos contratempos.
Isso leva
o cronista a elaborar um
decálogo que
disciplina o comportamento
dos usuários no novo
veículo.
O Artigo I, por exemplo, dispõe sobre
os encatarroados; eles podem entrar nos bonds
“com a condição
de não tossirem mais
de três vezes
em uma hora,
e no caso de pigarro,
quatro”. O Artigo
VI trata da leitura
dos jornais: “Cada
vez que
um passageiro
abrir a folha
que estiver lendo, terá o cuidado de não roçar as ventas dos vizinhos, nem
levar-lhes os chapéus.”
Por
essas pequenas amostras,
vê-se que o Machado
cronista de alguma forma prolonga o dos contos e dos romances;
as crônicas de “Fuga
do hospício” constituem pequenos recortes sobre
a vaidade e o ridículo
humano. A diferença
é que, nelas, a pena
da galhofa prevalece sobre a tinta
da melancolia. É preciso, afinal, alternar com o
riso a sombria seriedade que os compromissos do dia a dia nos infligem.