sexta-feira, 20 de junho de 2025

A lição de Vieira


            “Sermões escolhidos”, do Padre Antônio Vieira, é uma das obras frequentes no vestibular. Nela os alunos têm a possibilidade de conhecer nosso maior representante do conceptismo barroco.

         A vertente conceptista opunha-se à cultista, comumente exemplificada em poemas de Gregório de Matos. No conceptismo privilegiam-se as ideias, os conceitos, os jogos sutis do pensamentoenquanto que no cultismo se dá ênfase aos torneios formais (excesso de antíteses, apelo aos contrastes de cor, criação de metáforas raras etc.).

         O Barroco oscila entre essas duas tendências e muitas vezes as associa numa mesma composição. É muito difícil, nessa escola, isolar conceito de forma. A própria obra de Vieira, que é considerado um barroco clássico, demonstra isso.

         Grosso modo o Barroco se caracteriza por uma hipertrofia da forma, um excesso que visa a compensar o vazio de sentido decorrente de uma profunda crise espiritual. Vieira escapa ao desencanto porque tem os pés, ou melhor, o espírito plantado no solo do cristianismo. Seus sermões são comentários de passagens bíblicas, que ele amplifica e interpreta com engenho e paixão.

         Os “Sermõessão sobretudo um exemplo da articulação entre literatura, religiosidade e participação político-social. Vieira foi um militante que elegeu a Escravidão como o seu maior inimigo. Por defender os índios, que então se escravizavam e dizimavam aos montes, brigou com senhores de terra e com representantes da ala conservadora da Igreja. E por defender os cristãos-novos (judeus convertidos ao cristianismo), chegou a ser preso pela Inquisição.

         O jesuíta passou à história literária como um clássico da língua. Seus sermões equilibram a “agudeza” do conceito, cara ao estilo barroco, com a clareza necessária à persuasão. Como convencer alguém das verdades cristãs sendo obscuro e cerebrino? Ou se comprazendo, como faziam os cultistas, num jogo por vezes gratuito de antíteses e paradoxos?

         Essa mania dos contrastes, ele critica numa passagem do seu famosoSermão da Sexagésima”: “Se de uma parte dizem luz, da outra hão de dizer sombra; se de uma parte dizem desceu, da outra hão de dizer subiu. Basta que não havemos de ver num sermão duas palavras em paz? Todas hão de estar sempre em fronteira com o seu contrário?”

         Depois de censurar os pregadores que “fazem o sermão em xadrez de palavras”, Vieira dá esta preciosa lição de como escrever: “O estilo há de ser muito fácil e muito natural. Por isso, Cristo comparou o pregar ao semear. Compara Cristo o pregar ao semear, porque o semear é uma arte que tem mais de natureza que de arte.”

Machado cronista

  


           Fala-se muito do Machado dos romances e dos contos, e pouco se comenta o Machado de Assis cronista. Mas o velho Bruxo também foi bom nesse gênero. Uma boa oportunidade de constatar isso é lerFuga do hospício”. 

             Em relação ao romance, ao conto e à poesia, a crônica é considerada um gênero menor. Geralmente ela se atrela ao jornal, o que tende a lhe conferir um caráter efêmero. O cronista escreve para o hoje, não para a posteridade. Mas isso é verdade até certo ponto, pois não se aplica aos grandes estilistas. É basicamente o estilo que salva a crônica do efêmero, e disso há muitos exemplos em nossa literatura. Entre eles destaco Rubem Braga, Nelson Rodrigues e o próprio Machado.

         A crônica mescla seriedade e frivolidade, é uma forma de associar o útil ao fútil – caracterização, por sinal, que o próprio Machado criou. O cronista não tempo nem espaço para esmiuçar a alma humana, como faz o autor de ficção. Seu território são as emoções de superfície, produzidas pelo impacto dos acontecimentos. Ao mesmo tempo, ele usa essa aparente trivialidade como ponto de partida para tecer comentários sobre a natureza humana, a sociedade e a política da sua época. Em Machado, por exemplo, uma simples fofoca de sociedade pode ensejar uma reflexão sobre a vaidade ou a hipocrisia. Não raro ele responde aos fatos com ironia e humor, domínios em que é reconhecidamente mestre.  

            A fuga dos habitantes de um hospício, por exemplo, lhe serve de pretexto para a reflexão sobre a frágil fronteira entre sanidade e loucura, tema que enfocou genialmente na novela “O alienista”. “Uma vez que se foge do hospício de alienados (e não acuso por isso a administração), onde acharei método para distinguir um louco de um homem de juízo?”. O cronista na sagaz estratégia que os loucos empregaram para a fuga uma forma de inteligência que “diminuiu em grande parte a vantagem de ter juízo”.

            Um dos temas recorrentes no livro é o impacto dos bonds elétricos na vida das pessoas. Eles vieram aposentar as carruagens puxadas a burros mas, como tudo que representa progresso, criaram novos contratempos. Isso leva o cronista a elaborar um decálogo que disciplina o comportamento dos usuários no novo veículo.

            O Artigo I, por exemplo, dispõe sobre os encatarroados; eles podem entrar nos bondscom a condição de não tossirem mais de três vezes em uma hora, e no caso de pigarro, quatro”. O Artigo VI trata da leitura dos jornais: “Cada vez que um passageiro abrir a folha que estiver lendo, terá o cuidado de não roçar as ventas dos vizinhos, nem levar-lhes os chapéus.”

         Por essas pequenas amostras, vê-se que o Machado cronista de alguma forma prolonga o dos contos e dos romances; as crônicas de “Fuga do hospício” constituem pequenos recortes sobre a vaidade e o ridículo humano. A diferença é que, nelas, a pena da galhofa prevalece sobre a tinta da melancolia. É preciso, afinal, alternar com o riso a sombria seriedade que os compromissos do dia a dia nos infligem.

A lição de Vieira