terça-feira, 30 de janeiro de 2024

Para melhor agradecer

Tenho lido críticas por parte de estudiosos da língua ao uso de “Gratidão” no lugar de “Obrigado”. Alegam que esse é um caso de pedantismo e não deve substituir a forma clássica com que nos acostumamos a reconhecer um favor. “Gratidão”, de fato, soa um tanto pomposo. É como se, com a escolha do substantivo, o favorecido quisesse enfatizar o sentimento e não simplesmente mostrar que dele está imbuído.

       – Já que você não pôde ir para o almoço, vim aqui lhe trazer uns sanduíches.   

       – Gratidão.          

       Vejam que o beneficiário, ou beneficiária, não se limitou a mostrar-se agradecido(a). Evocou o que no ser humano é uma manifestação de grandeza de alma. Escolhendo o substantivo, leva o receptor a preencher todo um contexto elíptico (“Diante do favor que me fez, demonstro-lhe minha...”). Convenhamos em que isso torna o diálogo um tanto solene e pouco natural.   

       Risque-se então “Gratidão”, estou de acordo. Mas por que usar necessariamente “Obrigado”, e não “Grato?  Este é sintético, franco, e não sugere nenhum prévio compromisso da parte do favorecido.

        No “Obrigado”, como se sabe, o contemplado “se obriga” ao dever da retribuição. Confessa-se compelido a retribuir o favor mesmo que não esteja sendo sincero. Fala mais por um dever social do que por um impulso espontâneo, que traduza o reconhecimento pelo benefício recebido.

As coisas que fazemos por obrigação nem sempre são prazerosas. Quem já não ouviu de alguém a justificativa de que “fez porque foi obrigado”, ou seja, de que agiu de determinada maneira porque não tinha alternativa? Por que transferir essa possibilidade ao domínio das gentilezas e dos favores?

Se “me obrigo” diante de alguém, tenho-o como credor ou juiz – tipos sociais que não nos acostumamos a ver com simpatia. O primeiro nos cobra, o segundo nos julga, e ninguém se sente à vontade quando submetido a tais injunções. 

Sei que a sociedade se rege por obrigações de uns para com os outros. Mas não fica bem estendê-las ao domínio das reações espontâneas e afetuosas, como as que experimentamos diante de quem nos presta um favor ou concede uma graça. 

Não vou deixar de dizer “Obrigado”, que já é um clichê e cujo esvaziamento semântico vem se estendendo ao plano morfológico. Tanto é assim que o empregam tanto homens quanto mulheres (para desespero dos adeptos da linguagem neutra, que escolheriam “Obrigade”).

Mas confesso que prefiro mesmo “Grato”, que não comporta nenhum dever retributivo e tem o mesmo étimo de “Gratidão”. Além do mais, sendo um adjetivo, enfatiza o estado do beneficiário e não “a substanciosa” grandeza do sentimento. Sem falar que ganha da concorrente pela extensão. Os manuais de estilo, como se sabe, recomendam o uso de palavras curtas, e por esse critério o dissílabo “Grato” é preferível ao polissilábico “Obrigado”.


quinta-feira, 25 de janeiro de 2024

O desafio de manter o foco

 


Hoje se fala muito em manter o foco. São incontáveis os livros sobre o tema, que a meu ver implica basicamente dois tipos de atitude: ter em mente um objetivo e persistir até alcançá-lo. Muitos não sabem o que querem e se esforçam em vão. Outros até miram com clareza o alvo, mas não têm constância para chegar até ele.

O problema não atinge apenas pessoas comuns ou de mediana inteligência. Acomete também os gênios. Um caso famoso é o de Leonardo da Vinci, que costumava deixar os trabalhos pela metade (embora, segundo seus biógrafos, o motivo para isso fosse nobre: a sua imensa curiosidade por tudo). Outro caso é o de Jean-Paul Sartre; em texto que li há algum tempo, Wilson Martins criticava no filósofo existencialista, entre outras interrupções, o fato de não ter dado prosseguimento a “O ser e o nada”. Ele teria morrido devendo isso à humanidade.

Quem não completa o que começou fica sobretudo em débito consigo mesmo. E, pelo número de publicações que o problema vem suscitando, são muitas hoje as pessoas nessa situação. A cada manhã começam algo novo, mas o impulso para sequenciá-lo só vai até a noite. No dia seguinte, ao acordar, parecem ter perdido o fio que as conectava ao antigo propósito e têm que recomeçar do zero.

Não que esse pessoal queira se “reinventar” a cada dia. Esse verbo possui uma conotação positiva e se refere à capacidade, que poucos têm, de estar sempre renovando seus projetos. O recomeço a que me refiro consiste em reconectar os fios de uma deliberação que, por uma misteriosa química, a noite dispersou.

Isso não é nada fácil, pois depende de uma aliança entre vontade e predisposição inata. Ou seja, a genética interfere. Sabe-se que, se não comanda tudo, ela tem um peso que pode amargamente contrabalançar o empenho com que o indivíduo procura reencontrar o seu rumo.

A atenção que hoje se dá ao foco mostra que a dificuldade de estabelecer uma diretriz (intelectual ou existencial) está em boa medida ligada aos estímulos da vida moderna. Atualmente são muitos os apelos para seguir diferentes tendências de comportamento, grande parte deles potencializada pela instantaneidade da internet. Como se situar nessa avalanche de ideias que requisitam nossa atenção ao mesmo tempo que a despedaçam?

Os inúmeros apelos à dispersão fazem com que o desafio de manter o foco seja sobretudo interior. Mais do que ficar atento ao que se passa no mundo, o indivíduo deve voltar a atenção para si mesmo. Deve escolher em função de “quem é”, e não “ser” em função do que escolhe. Pois muitas vezes as escolhas, ao contrário do que diz o mestre do existencialismo citado linhas atrás, são determinadas por ilusões que a sociedade inculca no indivíduo para adequá-lo ao seu funcionamento.

Em tempo: o propósito desta crônica é um tanto terapêutico, pois também tenho dificuldade de manter o foco. Sei que, se me concentrasse suficientemente nas tarefas, produziria mais e talvez melhor. Já tentei menosprezar o problema fazendo uma frase: “Os gurus da autoajuda dizem que é preciso ter foco. Isso para mim não é problema; tenho vários.” Em seu humorístico nonsense, a frase pode ter ficado interessante – mas não afastou o abatimento que vez por outra a falta de constância nas metas provoca em mim.

segunda-feira, 8 de janeiro de 2024

O duplo

 

Mal coloca a primeira palavra no papel, ele ouve uma voz:
         – Finalmente você se decidiu...
         – Hein?! Se decidiu a quê?
         – A começar o texto, ora. Faz tempo que eu estou esperando.
         – Quem é você?
         – Sou o seu leitor. Vê se capricha para não me decepcionar.
         – O meu leitor? E o que está fazendo aqui? Espere pelo menos eu terminar. Sua hora vem depois.
         – Nada disso. Quero acompanhar o seu trabalho, talvez dar uma força. Afinal, você escreve para mim. Tenho todo o direito de lhe cobrar.
         – Cobrar?! Agora eu quero liberdade. Sua presença vai terminar me bloqueando. Dê o fora!
         – Dar o fora... Cuidado para não se arrepender do que está dizendo. Você pensa que significa alguma coisa sem mim?
         – Não seja pretensioso. Tenho liberdade para dizer o que quero, a quem quero e como quero.
         – Aí é que você se engana. Posso reduzir o que faz a uma insignificância. Posso estragar sua reputação e impedir que outros o leiam. E o pior: posso deixar você na mais completa solidão.
        – Como?
        – Ignorando os seus escritos. Deixando que fale sozinho.
        – Bem... sei que você tem esse poder, mas não é por isso que vou lhe aturar. E se me encher muito o saco, posso acabar dispensando-o. Escrevo para mim, e pronto.
        – Deixe de blefe! Você bem sabe que isso não é possível. Qual o sentido de escrever para si? Quem iria atestar o seu valor (caso você tenha)? Ou afagar a sua vaidade (que seguramente você tem)?
        – Todo homem tem direito à vaidade se o que faz é bom.
        – Mas quem decide sobre a qualidade do que ele faz? Ele próprio? Aí não seria vaidade, seria... delírio. Conheço muitos que vivem de fantasiar a própria glória; esses dão pena. Acho que você não é um deles.
        – Escute, essa conversa está me impedindo de escrever. Dê o fora e espere o texto ficar pronto. Aí você diz o que quiser.
        – Mais um blefe! Você está preocupadíssimo com o que eu possa dizer. Por que finge indiferença?
          – Não posso escrever enquanto você estiver por perto vigiando minhas palavras e avaliando se elas vão lhe agradar ou não. Isso é tirania.
          – Eu proponho que você me esqueça e faça o que tem que fazer.
          – Não faço, pronto! Desisti. Assim também deixo você frustrado. Não terá o que ler...
          – Para mim, tanto faz. Não vou mesmo perder muita coisa. Você está sem assunto.
          – Assuntos não faltam, ora!
          – Mentiroso. Está sem assunto, sim. E aposto como vai terminar, por falta do que dizer, contando esta conversa entre nós dois. Como se ela interessasse a alguém!

sábado, 6 de janeiro de 2024

Ano-Novo e reconciliação


As grandes datas têm sobretudo um valor simbólico. É o caso do Ano-Novo, que em essência não muda nada mas nos dá a impressão de que alguma coisa recomeça.

Todo ano a mais é um sinal de envelhecimento, mas insistimos em pensar que um novo tempo nasce à medida que outro morre. Em vez de sucessão, renovação. Na ingênua alegoria do nosso desejo, o Ano-Novo aparece como um bebê rechonchudo e risonho que vem substituir um velhinho magro e decrépito.

Ambos são imagens de nós mesmos. A segunda corresponde ao nosso eu real; a primeira, à fantasia com que julgamos renascer melhores, sem os velhos vícios e defeitos. A cada ano se renova o ciclo, com promessas que não são cumpridas e projetos que jamais viram realidade.

Precisamos dessas transições pomposas para nelas enquadrar nossos propósitos de mudança. Qual a graça em se deixar de fumar num dia qualquer? Faz mais efeito pensar que o abandono do cigarro vai ocorrer em um ano que se inicia. E que a partir do Ano-Novo nos transmutaremos num “novo homem”.

Assim como uns vão deixar o cigarro, outros prometem estudar com afinco para concursos. Ou mudar de profissão. Ou pedir finalmente a namorada em casamento. Mesmo que nada disso seja feito, este é o momento de sonhar “a sério” com a possibilidade.

As disposições mais comuns dizem respeito aos hábitos e ao caráter. Quem não promete a partir de agora se tornar mais generoso, humilde, disciplinadoQuem não vai moderar o egoísmo e desenvolver o senso de solidariedade? Quem não se tornará no próximo ano um ser humano melhor?

Para isso existe a data, e não adianta reagir com cinismo a tão sinceras deliberações. É preciso que vez por outra uma imagem ideal de nós mesmos ocupe o lugar do que somos. Essa ilusão de aperfeiçoamento e mudança nos anima a enfrentar o ano que vem. E, sobretudo, reconcilia-nos provisoriamente com nós mesmos. 

terça-feira, 2 de janeiro de 2024

Convite ao otimismo


            As expectativas não são nada boas para o ano que se inicia, mas lhe convido a ser otimista. Sei que não é fácil diante de tantas ameaças, como a do aquecimento global, mas até disso é possível tirar algum proveito.  O excesso de calor pode, por exemplo, fazer a garota que até então não lhe dava bola “se derreter” para o seu lado. Seria um ganho.  

É verdade que a polarização ideológica vai continuar afastando, inclusive, pessoas da mesma família, mas isso pode em alguma medida ser contornado se você evitar discutir política em ocasiões delicadas, como as refeições. Se não for possível, evite dizer em quem vai votar antes de terminar o almoço para não comprometer a digestão. Diga depois e abrace os que não concordam com você, a não ser que entre eles esteja aquele cunhado parrudo que gosta de fazer brincadeiras sem graça.  

Existem as guerras, é verdade, que não poupam nem a terra onde Cristo nasceu (acho que, se voltar ao mundo, ele vai escolher outro lugar). Vamos contudo torcer para que os litigantes deixem de matar mulheres e crianças; se for mesmo inevitável brigar, que se matem uns aos outros. Desse modo será possível contar com o fim dos conflitos por falta de mão de obra.   

Muitos temem uma hecatombe nucelar, mas tenho a impressão de que ela nunca vai ocorrer. Uma tragédia dessa dimensão acabaria com o mundo inteiro, ou seja, destruiria também os responsáveis pelas detonações, que obviamente não estariam dispostos a perder a vida. O que tem assegurado a permanência da nossa espécie na Terra, afinal de contas, é o velho e natural instinto de sobrevivência.  

Sei que é difícil manter o otimismo num mundo tão conflagrado, mas não custa tentar – mesmo porque não há outra saída. Como não se pode mudar a ordem (ou a desordem) das coisas, o melhor é se concentrar em metas individuais. Aqui vão algumas:

 - Acredite em você. Alguém, afinal, tem que fazer isso.

- Seja prudente, comendo apenas o essencial para satisfazer a sua gula. Lembre-se de que o excesso de calorias pode impedir que você corra de algum assaltante que queira lhe roubar o celular.

- Faça exercícios com moderação. Se na academia não houver alguém com esse nome, faça com outro instrutor mesmo.

- Seja educado no trânsito. Se alguém, por exemplo, lhe der uma “fechada”, não o agrida berrando que a mãe dele (ou dela) pratica a mais antiga das profissões. Opte por lhe destinar silenciosamente “uma banana” e siga em frente.

- Não queira ter um monte de seguidores nas redes sociais. Contente-se com os que possam alcançá-lo.

-  Evite a frequência no uso do celular. Caso a redução lhe provoque crise de abstinência, consulte o Google para saber o que fazer. Você pode lançar mão desse expediente várias vezes por dia.

- Desconfie da Inteligência Artificial, pois muitas vezes ela mistura os dados e pode deixá-lo mais “burro” (entre aspas, para não ofender o animal) do que você já é.

          - Procure viajar, conhecer outros lugares. Eles em essência não são diferentes do seu lugar de origem, mas você levará algum tempo para perceber isso e nesse intervalo poderá sonhar.

O silêncio do inocente