Mal coloca a primeira palavra no papel, ele ouve uma voz:
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Finalmente você se decidiu...
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Hein?! Se decidiu a quê?
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A começar o texto, ora. Faz tempo que eu estou esperando.
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Quem é você? 
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Sou o seu leitor. Vê se capricha para não me decepcionar.
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O meu leitor? E o que está fazendo aqui? Espere pelo menos eu terminar. Sua
hora vem depois.  
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Nada disso. Quero acompanhar o seu trabalho, talvez dar uma força. Afinal, você
escreve para mim. Tenho todo o direito de lhe cobrar.   
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Cobrar?! Agora eu quero liberdade. Sua presença vai terminar me bloqueando. Dê
o fora!
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Dar o fora!... Cuidado para não se arrepender do que está dizendo. Você pensa
que significa alguma coisa sem mim?
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Não seja pretensioso. Tenho liberdade para dizer o que quero, a quem quero e
como quero. 
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Aí é que você se engana. Posso reduzir o que faz a uma insignificância. Posso
estragar sua reputação e impedir que outros lhe leiam. E o pior: posso deixar
você na mais completa solidão.
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Como? 
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Ignorando os seus escritos. Deixando que fale sozinho.
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Bem... sei que você tem esse poder, mas não é por isso que vou lhe aturar. E se
me encher muito o saco, posso acabar dispensando-o. Escrevo para mim, e pronto.
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Deixe de blefe! Você bem sabe que isso não é possível. Qual o sentido de
escrever para si? Quem iria atestar o seu valor (caso você tenha)? Ou afagar a
sua vaidade (que seguramente você tem)?
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Todo homem tem direito à vaidade se o que faz é bom.  
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Mas quem decide sobre a qualidade do que ele faz? Ele próprio? Aí não seria
vaidade, seria delírio... Conheço muitos que vivem de fantasiar a própria
glória; esses dão pena. Acho que você não é um deles.  
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Escute, essa conversa está me impedindo de escrever. Dê o fora e espere o texto
ficar pronto. Aí você diz o que quiser. 
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Mais um blefe! Você está preocupadíssimo com o que eu possa dizer. Por que
finge indiferença?
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Não posso escrever enquanto você estiver por perto vigiando minhas palavras e
avaliando se elas vão lhe agradar ou não. Isso é tirania. 
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Eu proponho que você me esqueça e faça o que tem que fazer.
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Não faço, pronto. Desisti. Assim também deixo você frustrado. Não terá o que ler...
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Para mim, tanto faz. Não vou mesmo perder muita coisa. Você está sem assunto.
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Assuntos não faltam, ora!
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Mentiroso. Está sem assunto, sim. E aposto como vai terminar, por falta do que
dizer, contando esta conversa entre nós dois. Como se ela interessasse a
alguém!