terça-feira, 30 de abril de 2019

O mito e o risco

Todo mito
passa um pito
nos que lhe entoam benditos.

O mito só faz sentido
quando a olhos comovidos
disfarça, sem alarido,
o seu avesso escondido.

Os que o consagram nos ritos
(com mãos postas, ar contrito),
se o vissem desvestido
da aura que o mantém vivo,

teriam, desiludidos,
que mudar o veredicto
e procurar outro arrimo
para seus ermos espíritos.

Não pode viver sem mitos
o homem — ser tão restrito,
que deles subtraído
erra no Nada infinito.

E dessa carência, o risco
(ante o anseio mofino
de a tudo entoar um hino)
é perder o senso, o tino,
privar-se do humano exílio,
que o põe além dos bichos.

terça-feira, 23 de abril de 2019

O melhor amigo


Por que o livro é o melhor amigo do homem? Motivos não faltam.
- Ele nos acompanha para onde a gente vá. 
- Independentemente do dia, do lugar ou do clima, está sempre disposto a se abrir para nós.
- Desde que a gente o observe com atenção, não nos deixa sair da linha.
- É capaz de contar histórias sérias ou divertidas, mas também nos orienta e instrui.
- Faz-nos “viajar” de forma segura, imune às intempéries, pelos mais diversos lugares do mundo.
- Apresenta-nos a personagens intrigantes e profundos, que nos ajudam a compreender melhor a alma humana. Com essas figuras a gente se identifica e estabelece uma comunhão impossível de estabelecer com as pessoas de carne e osso. 
- Não protesta quando o esquecemos por um tempo, deixando-o às traças, pois sabe que em algum momento a ele vamos retornar.    
- Não se irrita quando a gente o suja, amassa ou rabisca. Pelo contrário, sabe que esses maus-tratos significam que estamos vivamente interessados no que ele nos diz.  
- Não se chateia se a gente, por cansaço ou preguiça, resolve virar a página, ou mesmo substituí-lo por outro. Ciúme não é com ele.
 - Não se constrange quando o apertamos, sopesamos, manuseamos, pois sente esses contatos como uma intimidade destituída de interesses escusos ou de má-fe.
- Não fica magoado quando o passamos a outra pessoa, pois a sua fidelidade (ao contrário da dos cães) é extensiva a todo o gênero humano.
- Está sempre de bom humor, sorrindo para nós de orelha a orelha.


segunda-feira, 22 de abril de 2019

68 anos - um marco e algumas marcas


Antes que me perguntem (ou, pior, que comecem a fazer suposições), informo que chego hoje aos 68 (espero que seja um ano que termine). É uma dessas idades em que a gente começa a passar a vida a limpo – embora jamais edite a versão final; isso quem faz são os outros. Uma das injustiças da morte é impedir que nos defendamos do que vão dizer de nós. Tratemos então de fazer nossa defesa enquanto estivermos vivos.    
Datas como essa tendem a nos tornar filosóficos, meditativos. As pessoas esperam que digamos coisas verdadeiras ou sublimes sobre a vida. Acham, um tanto ingenuamente, que a experiência de outros irá servir para elas. Não servirão. A verdade é sempre de cada um, e cada um a constrói de acordo com a sua natureza, seus desejos e suas propensões.
Viver é bom? A pergunta não deve ser esta, e sim: viver é uma dádiva ou um ofício? Não adianta perguntar por que estamos aqui, pois para isso não existe resposta. A vida é uma contingência, de certo modo uma imposição, e cabe ao ser humano aceitá-la.
O que chamam de felicidade depende de fatores objetivos e subjetivos. Para uns é naturalmente mais difícil ser feliz (equipamento genético conta). Mas, assim como há o determinismo, há também a liberdade que a consciência propicia. O que se chama destino é fruto de uma parceria entre o nosso determinismo (genética, local de nascimento, ambiente) e a nossa configuração pessoal. Existe, sim, uma ponta de responsabilidade pessoal em nosso destino, assim como nossas escolhas aparentemente livres encontram obstáculos em forças que estão além de nós.
A questão não é se viver vale a pena, mas sim quanto de pena você pode evitar ao viver. A idade pesa menos do que a gente imaginava quando era jovem (desde que não se engorde muito, claro). É preciso aceitar a idade que se tem. Não há nada mais grotesco (e doloroso) do que lamentar o corpo que já não se possui, as possibilidades físicas que foram se perdendo com o tempo. Não se pode negar que tudo isso é duro, mas não devemos agravar o quadro com nossas lamentações. O ser humano se diz inteligente, mas tem um enorme despreparo para entender coisas essenciais – como, por exemplo, a sua origem natural.
Desconhecer a natureza (da qual fazemos parte) e as suas leis (que de algum modo regram nosso comportamento) é uma das maiores fontes da nossa miséria. Faz com que, por exemplo, tenhamos dificuldade de aceitar a morte – como se vida e morte não representassem diferentes estágios de um mesmo processo.
Nada contra sonhar com o Além, desde que nisso não penetrem o engodo, a contrafação, o escamoteamento da verdade (não faltam oportunistas dispostos a nos manipular nesse nebuloso domínio a que chamam de sobrenatural). A razão será sempre o farol; e a ciência, sua filha, é de quem a gente pode esperar meios para curar doenças e viver melhor. Isso não vai de encontro à crença que a pessoa, por hábito ou necessidade, resolva adotar. Não há por que abdicar daquilo que psicologicamente nos fortalece. A solidão do ateu, só Deus sabe. 
Mas para que tudo isso numa data como hoje? E o bolo, e os parabéns, e as velas para apagar? O tempo nos faz menos entusiasmados com esse tipo de comemoração. Já foram tantas... Mas sempre há uma sensação de triunfo, uma enorme gratidão às pessoas e às circunstâncias que concorreram para que atingíssemos esse marco. O sucesso de uma vida não se mede pelos anos, mas a longevidade supõe alguns louváveis requisitos – entre eles a paciência, a tolerância, o senso de humor. O humor é sempre uma vitória sobre o desespero. Será em grande parte graças a ele que no próximo ano vou fazer 69 (sem piadas, por favor!)

domingo, 14 de abril de 2019

O outro


O demônio que me habita
é o melhor de mim.

Ele me faz desagradável
aos outros,
e tenho que me tornar brando
para disfarçá-lo
(quanta delicadeza
na máscara angelical!).

O demônio sabe o que eu
não sei,
magoa-me com o seu negro 
ceticismo.

Mas há momentos em que rimos juntos
(por isso digo que ele é o melhor de mim).

quarta-feira, 10 de abril de 2019

Descoberta

Enterrei meu pai em mim.

E hoje à beira do seu túmulo
(que sou eu)
choro lágrimas que não tenho,
rezo a prece que não digo,
ouço a voz que me calou.

Um no outro soterrados,

descobrimos o amor.


quinta-feira, 4 de abril de 2019

O ministro e o Sabiá


O ministro Moro tem sido alvo de severas críticas por haver alterado a pronúncia da palavra “cônjuge”. Ele suprimiu a sílaba medial desse vocábulo, dizendo “conge”. Esse fenômeno tem nome; chama-se haplologia, que é a supressão de sílaba parecida ou igual. Ocorre, por exemplo, em “bondoso”, que deveria ser pronunciado “bondadoso” (bondade mais o sufixo oso) ou “idolatria”, cuja pronúncia deveria ser “idololatria” (ídolo mais latria).
A haplologia sintoniza-se com o anseio popular de simplificação linguística. É fruto da associação entre a lei do menor esforço e a busca por eufonia. “Cônjuge”, vamos convir, é uma palavra “feia”. Foi até objeto de gozação por Rubem Braga. Numa de suas crônicas, o Sabiá escreveu mais ou menos o seguinte (cito de cor): “Quando a mulher descobre que o seu marido é seu cônjuge, coitado dele.” O povo tende a rejeitar essa palavra, que é comum no jargão jurídico. Por isso, aliás, seria estranho que Moro (um homem do Direito) já não tivesse se deparado com ela e não a tivesse usado.
Efeito contrário ao da haplologia ocorre na epêntese, que é o acréscimo de fonema no interior do vocábulo. Há quem, por exemplo, pronuncie “corrupição” (Millôr escrevia assim quando queria ironizar nossas vãs tentativas de combater os corruptos). O motivo para esse tipo de acréscimo é a hipercorreção, também uma tendência popular; é comum nos que acham que “falar difícil” é falar bem.
Se há uma auspiciosa novidade nesse episódio envolvendo Moro é a preocupação dos seus críticos com o bom uso da língua. Antes eles achavam que o respeito à norma culta era coisa “das elites”. Tanto que defendiam as transgressões normativas de políticos e líderes populares. Para serem coerentes, não deverão mais aceitar os solecismos de regência e as inadequações semânticas que tais figuras públicas costumam produzir. Isso é bom. Talvez um pouco de pureza vernácula em nossa política compense as (inúmeras) impurezas que a deterioram.
Quanto ao ministro, aceito que ele continue mudando a prosódia dos vocábulos desde que se mantenha firme na cruzada contra a corrupição, digo, a corrupção.

segunda-feira, 1 de abril de 2019

Caminho


Invento minhas orações
à medida que penso.
Pensar é rezar fora da igreja.

Cada qual tem sua religião,
que o guia de dentro para fora
seguindo a bússola das ideias
e do coração.

Nem todo roteiro é bom.
Nem todo porto é seguro.
E às vezes o que acalma
é vão ou impuro.

Ainda assim caminho
(árbitro de mim)
tangenciando o abismo
sem fim.

O silêncio do inocente